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São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2003

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Em seu novo livro, "Bush na Babilônia", Tariq Ali mescla a análise histórica e a política para tratar da ocupação norte-americana do Iraque

PÁGINAS DA OCUPAÇÃO

Leia a seguir trecho do livro "Bush na Babilônia", escrito por Tariq Ali, que a editora Record lança neste mês.
 
Às vezes, quando contemplam o mundo, os poetas são tomados pelo pressentimento da escuridão. Em carta a um amigo, Rimbaud explicou que para ser poeta "é necessário ser visionário, fazer de si mesmo um visionário. O poeta faz de si um visionário com uma longa, imensa e racional turbulência dos sentidos (...) ele alcança o desconhecido". Mas não são apenas os sentidos ou o jogo entre pensamento e sensação que produzem um visionário. É a consciência do ambiente, do solo que fertiliza o pensamento.
Pouco depois do verão de 1824, quando o Estado prussiano instituiu leis discriminadoras para impedir que os judeus ensinassem em escolas e universidades, Hein- rich Heine (que na época já se tinha convertido do judaísmo ao protestantismo) escreveu a um amigo dizendo que, apesar da mudança de religião, defenderia com vigor os direitos civis dos judeus (...).
Os poetas que compreendem a história costumam estar cheios de pressentimentos profundos. Nunca se permitem mergulhar no desespero; continuam a ter esperança, enquanto recordam os crimes do passado como advertência para os criminosos de hoje; alertam seus leitores para as punições que caem sobre os que ficam em silêncio e se tornam cúmplices de assassinato.
O poeta hebreu Aharon Shabtai apela a seus compatriotas para que não pensem no passado apenas do ponto de vista do oprimido, mas para que olhem para dentro de si e perguntem se, até mesmo inconscientemente, não herdaram algo de seus opressores. A história é imprevisível. O horror colonial imposto aos palestinos pode um dia ser apresentado aos israelenses no banco dos réus:
Quando tudo tiver fim,
Meu querido e prezado leitor,
Em qual destes bancos será
Que então deveremos sentar?
Aqueles de nós que gritaram "Morte aos árabes!"
E aqueles de nós que alegaram "nada saber"?
Durante a maior parte do século 20, a poesia, embora não os poetas, gozou de considerável liberdade no mundo árabe, não importando quem governasse. Como isto aconteceu? Fácil de aprender, a poesia pode ser recitada num café (...), pode cruzar as fronteiras, viajando de cidade em cidade sem medo. E isto ela fez, ajudando a aliviar a fome intelectual e espiritual da nação árabe.
Quanto aos poetas, eles sofreram. Suas vidas foram dominadas por despedidas forçadas, pelo exílio indesejado. Uma vez que a verdade pública é posta fora da lei, chega a hora do contemporizador -o poeta (ou jornalista, ou intelectual) sabujo que enfeita as plataformas oficiais, zomba da idéia de que o poeta é uma tribuna, fala apenas das virtudes do intelectual enquanto recreador.
Mas os ditadores, até mesmo os menos inteligentes, preferem o artigo original. Desprezam os sabujos que podem ser comprados e vendidos pela Muhabarat (a polícia secreta) de qualquer país.
O líder que exerce o poder absoluto (...) acredita que possui também sabedoria absoluta e, naturalmente, bondade absoluta e, em consequência, quer que os poetas respeitados pelo povo escrevam versos que o deifiquem e homenageiem seu regime.
No início da década de 1930, Osip Mandelstam sentiu-se obrigado a escrever alguns poemas péssimos glorificando Stálin. Sabia que eram horríveis. Um antídoto de limpeza tornou-se necessário. Mandelstam compôs um único poema luminoso e cruel contra Stálin, que só recitava para amigos íntimos e, ainda assim, aos sussurros.
Mas este grande poeta esqueceu (ou talvez não) que assim que o poema foge de seu refúgio, a cabeça do poeta, e é escrito ou recitado, não há como mandá-lo retornar. E, o que foi trágico para Mandelstam, seu poema não pôde ser chamado de volta. Viajou por toda a antiga União Soviética, foi traduzido para os idiomas locais ao percorrer a Ucrânia, a Geórgia, o Azerbaijão e o Uzbequistão.
E certo dia Stálin ouviu falar dele e o poema chegou ao Kremlin. Ele mesmo poeta menor na juventude e então um homem obsessivo, Stálin deve tê-lo lido muitas vezes, imaginando como estava sendo recebido por todo o país e, mais importante, se fizera algum de seus colegas do Politburo rir quando ele virava as costas. O poema tornou-se imortal, mas custou ao poeta sua vida.
O Iraque sempre foi um país orgulhoso. Este orgulho refletiu-se muitas vezes no trabalho de seus poetas teimosos e leais, que se recusam a dobrar os joelhos. (...)
Em 1979, ano em que Saddam Hussein tornou-se governante absoluto e decidiu varrer o que restava da esquerda no Iraque, o poeta Saadi Youssef, não desejando escrever maus poemas, fugiu de Bagdá. Era impossível estar em paz com a nova Inquisição e manter-se criativo. Assim, ele disse adeus a Bagdá e Basra e buscou refúgio em Beirute. Em abril do mesmo ano, escreveu "Amizade" e dedicou-o ao amigo e colega poeta Adonis:
Um quarto de século já se passou
E agora viemos então descobrir
Que Ibn Tamiya então se tornou
Cabeça de clava
enquanto al-Muwafaq continua a juntar
escravos rebeldes
Tirados das fundas entranhas da terra.
E a polícia de Damasco nos chuta
E a polícia do Iraque
E a polícia americana dos árabes
E a inglesa
E a francesa
E a persa
E a polícia otomana
E a polícia dos califas fatímidas (...)
E também nos chutam nossas famílias,
Nossas ingênuas famílias de bem,
Nossas famílias assassinas!!!
Somos os filhos dessa loucura.
Sejamos o que quisermos.


A OBRA
Bush na Babilônia
Autor: Tariq Ali
Editora: Record
Quanto: R$ 34 (240 págs.)


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