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São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2003

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CRÍTICA

Tariq Ali critica "libertação" do Iraque e apatia árabe

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Por que pessoas inteligentes da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos ficam surpresas ao saber que a ocupação é detestada pela maioria dos cidadãos iraquianos? Será que a razão é que não há lembrança, nesses dois países, de terem sido ocupados?", pergunta o escritor paquistanês Tariq Ali na introdução de seu novo livro.
Mescla de análise política e histórica, "Bush na Babilônia" procura justamente demonstrar por que muitos iraquianos respondem com hostilidade à "libertação" de seu país e desconfiam das intenções de tropas estrangeiras. Escrito logo após o início da invasão anglo-americana a esse país que abrigou a Mesopotâmia, o livro examina os efeitos devastadores da ditadura de Saddam Hussein, mas não poupa críticas à ocupação militar e à campanha que abriu caminho para ela. Ali resgata uma série de discursos de George W. Bush e de assessores próximos ao presidente norte-americano que, por um lado, reiteram a teoria de um perigo iminente e, por outro, destacam a importância do petróleo iraquiano.
O autor cita o vice-secretário da Defesa, Paul Wolfowitz: "Por razões que têm muito a ver com a burocracia governamental dos EUA, optamos pela única questão com a qual todos podiam concordar: as armas de destruição em massa". E ainda sobre a opção militar, nas palavras de Wolfowitz: "Economicamente, não tínhamos outra opção no Iraque. O país nada em uma mar de petróleo".
Ali faz um breve histórico da Iraq Petroleum Company, de propriedade britânica, e de seu papel em disputas bélicas. "Hoje, na era do banditismo capitalista que gente bem-educada descreve como "globalização", a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos vai privatizar essa commodity mais uma vez. E daqui a 20 anos?", questiona.
Na opinião do escritor, membro do conselho editorial da revista acadêmica "New Left Review" e autor de "Confronto de Fundamentalismos" (Record), entre outros livros, "o pretexto oficial de que a guerra era fundamental para eliminar as armas de destruição em massa do Iraque era tão frágil que teve de ser descartado como um embaraço quando até o corpo de inspetores da ONU, famoso por sua subserviência e abertamente infiltrado pela CIA [serviço de inteligência dos EUA], foi incapaz de encontrar qualquer traço deles".

Manifestações
Em 15 de fevereiro, no maior protesto coletivo da história da humanidade, mais de 10 milhões de pessoas promoveram atos contra a guerra em pelo menos 60 países. Os manifestantes rejeitavam a justificativa apresentada para a ação bélica: a suposta existência de armas de destruição em massas e a necessidade de uma ofensiva militar para destruí-las.
O capítulo seis é dedicado justamente a esse movimento pacifista. "Oriundos de muitos cenários políticos e sociais diferentes, uniam-se apenas pelo desejo de impedir a invasão imperialista de um país árabe rico em petróleo numa região já dilacerada pela guerra colonial na Palestina", afirma o autor, que recorda, ainda, a repressão de governos árabes aos protestos, fosse no "regime mercenário de Hosni Mubarak", no Egito, ou no "protetorado israelo-americano da Jordânia".
As críticas também atingem a Liga Árabe, que, segundo Ali, "superou-se como expressão coletiva da ignomínia, anunciando sua oposição à guerra ainda que a maioria dos membros participasse dela. Essa é uma entidade capaz de dizer que a Caaba [na Arábia Saudita] é negra enquanto a pinta de vermelho, branco e azul".
O autor se serve das "bodas de chacal" para descrever as reuniões dos que colaboram com a atual administração no Iraque. Nas noites de verão, no sul do país, os chacais fazem algazarra e barulho durante o acasalamento e no ritual que o acompanha, e é essa a imagem que ilustraria a agitação dos outros "chacais". "O barulho e fedor são insuportáveis", afirma.
Ali traça um breve panorama da ocupação e da resistência nos últimos séculos, desde a invasão mongol de 1258, que resultou na destruição de Bagdá e na morte do califa e de vários de seus familiares, até os acontecimentos mais recentes. Cabia um pouco mais de rigor histórico, a documentação podia ter sido mais meticulosa (sobretudo nos capítulos finais), mas o escritor compensa isso com o resgate (e a recomendação que faz) da obra de Hanna Batatu, que teve acesso aos arquivos da polícia de Bagdá, no período entre guerras, e aos documentos do Foreign Office (Departamento de Relações Exteriores) britânico. Batatu também fez uma descrição minuciosa da Revolução de 1958 e do período posterior até o final de década de 70.
O quadro que Ali traça para o futuro aponta para uma repressão sistemática contra a oposição e para o fortalecimento da "teoria de que os iraquianos são um "povo doente" que precisará de um tratamento prolongado antes que possam ser confiados a seu próprio destino (se isso vier a acontecer)". Com as ações contra a ocupação crescendo a cada dia e a situação da população civil se agravando, talvez seja a hora de rever o "tratamento".


Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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