São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2008

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LIVROS

Crítica/ "Antigos e Soltos"

Rascunhos revelam Ana Cristina Cesar

Coletânea de inéditos organizada pelo Instituto Moreira Salles faz do leitor um voyeur da construção inquieta da poeta

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

V iviana Bosi, uma das organizadoras de "Antigos e Soltos" -lançado agora pelo Instituto Moreira Salles, com fac-símiles de uma pasta rosa de Ana Cristina Cesar, onde ela guardava desde guardanapinhos a cartas e poemas incompletos-, diz, na introdução ao livro, que Ana buscava a "apreensão impossível da vida enquanto acontece".
Somos nós, agora, seus leitores, a buscar a mesma apreensão impossível do que era sua vida e sua poesia (no caso específico dela, inseparáveis), no momento urgente mesmo em que ela acontecia.
E acontecia muito; com intensidade, presença e verdade. São nesses papéis rabiscados, rasurados, que lemos a aproximação de coisas como "segredo" e "secreção", duas palavras com a mesma origem e que Ana C.
soube justapor poeticamente.
Sua poesia é como uma secreção de segredos; palavras, fragmentos e fraturas que vão saindo do corpo da poeta e atingindo o nosso em lugares onde essas secreções acabam se alojando como pequenos segredos. É como se entrássemos nos bastidores de uma poesia e de uma vida que já era toda costurada de esconderijos e descaminhos; vamos tropeçando em seu "trôpego silêncio" e também em seu descozido barulho.
Ana C. pensa, pensa, mistura, acumula, subtrai, até chegar ao ponto de dizer que "perdeu o/ paladar/ de tanto pensar que/ comia". O livro propõe a possibilidade de acompanharmos justamente a construção sempre inquieta de uma vida poética, que pende entre o pensamento, a raiva, o corpo e a inocência.
Afinal, a entrega é tamanha que, mesmo nos momentos mais pensantes e duros, permanece a inocência daqueles que acreditavam em mudar o mundo: "changer la vie", e que, para isso, sentiam até a raiva de forma pura.

Aventura
É difícil (e provavelmente indesejável e desnecessário) assumir a postura de uma leitura crítica diante de um livro cujo pressuposto é o trabalho editorial, que é belíssimo, e cujo conteúdo são papéis que não se pretendiam publicáveis. Seria absurdo emitir juízos sobre a qualidade desses proto-poemas, cartas e bilhetes.
Sendo assim, como a própria autora diz, assistimos à sua "aventura de registrar a fenda", tentando encaixar-nos por entre os buracos que sua escrita vai formando, como dizia Clarice Lispector (de alguma forma próxima de Ana C.), quando dizia que seus leitores, para entendê-la, precisariam colocar-se entre as linhas do que ela escrevia. Como espiões convidados, escondidos entre uma linha e outra, buscando compreender sentidos velados.
Afinal, revirar uma pasta escondida é um pouco isso, mesmo quando se trata dos guardados de uma poeta reconhecida.
Darmo-nos a licença de um certo voyeurismo e a possibilidade cada vez mais necessária do espanto, palavra solitária que Ana C. desenha em letra branca numa página solta. Modesto Carone, ao escrever sobre Kafka, diz que "o espantoso é que o espantoso não espanta mais". Um livro assim deve ser capaz de reavivar em nós esse exercício um tanto esquecido.

ANTIGOS E SOLTOS
Autor: Ana Cristina Cesar
Editora: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 70 (480 págs.)
Avaliação: ótimo



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