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LIVROS
Crítica/ "Antigos e Soltos"
Rascunhos revelam Ana Cristina Cesar
Coletânea de inéditos organizada pelo Instituto Moreira Salles faz do leitor um voyeur da construção inquieta da poeta
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
V
iviana Bosi, uma das organizadoras de "Antigos e Soltos" -lançado
agora pelo Instituto Moreira
Salles, com fac-símiles de uma
pasta rosa de Ana Cristina Cesar, onde ela guardava desde
guardanapinhos a cartas e poemas incompletos-, diz, na introdução ao livro, que Ana buscava a "apreensão impossível
da vida enquanto acontece".
Somos nós, agora, seus leitores, a buscar a mesma apreensão impossível do que era sua
vida e sua poesia (no caso específico dela, inseparáveis), no
momento urgente mesmo em
que ela acontecia.
E acontecia muito; com intensidade, presença e verdade. São
nesses papéis rabiscados, rasurados, que lemos a aproximação
de coisas como "segredo" e "secreção", duas palavras com a
mesma origem e que Ana C.
soube justapor poeticamente.
Sua poesia é como uma secreção de segredos; palavras, fragmentos e fraturas que vão saindo do corpo da poeta e atingindo
o nosso em lugares onde essas
secreções acabam se alojando
como pequenos segredos. É como se entrássemos nos bastidores de uma poesia e de uma vida
que já era toda costurada de esconderijos e descaminhos; vamos tropeçando em seu "trôpego silêncio" e também em seu
descozido barulho.
Ana C. pensa, pensa, mistura,
acumula, subtrai, até chegar ao
ponto de dizer que "perdeu o/
paladar/ de tanto pensar que/
comia". O livro propõe a possibilidade de acompanharmos justamente a construção sempre
inquieta de uma vida poética,
que pende entre o pensamento,
a raiva, o corpo e a inocência.
Afinal, a entrega é tamanha
que, mesmo nos momentos mais
pensantes e duros, permanece a
inocência daqueles que acreditavam em mudar o mundo: "changer la vie", e que, para isso, sentiam até a raiva de forma pura.
Aventura
É difícil (e provavelmente indesejável e desnecessário) assumir a postura de uma leitura
crítica diante de um livro cujo
pressuposto é o trabalho editorial, que é belíssimo, e cujo conteúdo são papéis que não se
pretendiam publicáveis. Seria
absurdo emitir juízos sobre a
qualidade desses proto-poemas, cartas e bilhetes.
Sendo assim, como a própria
autora diz, assistimos à sua
"aventura de registrar a fenda",
tentando encaixar-nos por entre os buracos que sua escrita
vai formando, como dizia Clarice Lispector (de alguma forma
próxima de Ana C.), quando dizia que seus leitores, para entendê-la, precisariam colocar-se entre as linhas do que ela escrevia. Como espiões convidados, escondidos entre uma linha e outra, buscando compreender sentidos velados.
Afinal, revirar uma pasta escondida é um pouco isso, mesmo quando se trata dos guardados de uma poeta reconhecida.
Darmo-nos a licença de um certo voyeurismo e a possibilidade
cada vez mais necessária do espanto, palavra solitária que Ana
C. desenha em letra branca numa página solta. Modesto Carone, ao escrever sobre Kafka, diz
que "o espantoso é que o espantoso não espanta mais". Um livro assim deve ser capaz de reavivar em nós esse exercício um
tanto esquecido.
ANTIGOS E SOLTOS
Autor: Ana Cristina Cesar
Editora: Instituto Moreira Salles
Quanto: R$ 70 (480 págs.)
Avaliação: ótimo
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