São Paulo, sábado, 01 de novembro de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Os intestinos da Camorra


"Gomorra", livro de Saviano adaptado para o cinema, descreve o Estado paralelo criado pela máfia napolitana

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"GOMORRA" -livro do italiano Roberto Saviano que será lançado aqui pela editora Bertrand Brasil- começa com a descrição de uma avalanche de corpos que se precipitam de um contêiner alçado sobre o porto de Nápoles: esses troncos parecendo manequins, com etiquetas de identificação amarradas ao pescoço, são cadáveres de imigrantes chineses que pagaram para, uma vez mortos, serem levados de volta ao país natal.
À primeira vista, a cena tem pouca relação com o tema central da obra -o império econômico da Camorra (a máfia napolitana).
Mas a redução do corpo à mercadoria clandestina é um intróito perfeito para esse livro-reportagem que foi adaptado pelo diretor Matteo Garrone (o filme homônimo exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) e obrigou Saviano a sair de Nápoles sob ameaças dos chefões do crime.
Os chineses de Nápoles são parte da indústria de contrafação e tráfico de drogas montada pelos camorristas. Captar esse mecanismo, assimilando-o à estrutura romanesca, é uma das virtudes de "Gomorra", cujo título explora a paronímia entre o termo Camorra e o nome da cidade bíblica destruída pelo fogo dos céus.
A reconstituição da cadeia produtiva mafiosa, que abarca desde produtos vendidos por camelôs até artigos da alta-costura (incluindo cocaína e heroína), é vazada numa linguagem que extrai do circuito da mercadoria as metáforas da deglutição e excreção que definem o fluxo do capital: a baía napolitana é o "ânus do mar que se alarga com grande dor dos esfíncteres", despejando os resíduos do abdômen cronicamente infeccionado da Itália moderna.
A relação da Camorra com as grandes grifes (que não podem prescindir da mão-de-obra ilegal e por isso toleram a falsificação) é mesma que se dá entre o norte industrializado e a economia informal das regiões meridionais: o contrabando é "a Fiat do sul, o "welfare" dos sem-Estado" -e isso abrange os resíduos industriais que vêm de metrópoles como Milão para os aterros de Nápoles, negócio tão rentável quanto o narcotráfico.
A descrição desse Estado paralelo, responsável pelos maiores índices de violência da Europa, tem semelhanças com "Cidade de Deus", de Paulo Lins, também no pacto ficcional que estabelece com o leitor: o narrador de "Gomorra" supostamente viu tudo aquilo que conta, mas imprime à narrativa um andamento cinematográfico, com guerras entre famílias, heroinômanos que servem de cobaia para testar drogas e jovens que idolatram mafiosos hollywoodianos em rituais de iniciação na violência -resultando num épico sobre a dinâmica de desejo e excesso que rege a sociedade contemporânea.

GOMORRA
Autor: Roberto Saviano
Editora: Mondadori
Quanto: 15,50 euros (334 págs.; pode ser encomendado pelo site: www.ibs.it)
Avaliação: ótimo



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