São Paulo, sábado, 1 de novembro de 1997.




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Amok, mercados, auto-regulamentação

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Amok (ou amuck): desvario, insanidade. Stefan Zweig popularizou o substantivo em 1922 com a novela de mesmo nome, história de um arruinado médico alemão que se refugia no Extremo Oriente e lá, nostálgico do Ocidente, se entrega a uma paixão doentia, a loucura da Malásia.
Estamos em pleno amok do mercado de capitais. Primeiro crash on-line, a segunda-feira negra não foi virtual. Mesmo com as pequenas recuperações e, a despeito da compulsão moderna em forçar euforias e espantar angústias, deixará cicatrizes.
A infalibilidade de um sistema doido baseado nas "leis do mercado" está posta em questão. A auto-regulamentação proposta por esse sistema não tem a menor confiabilidade. Contabilizados os prejuízos, pessoais e coletivos, vale a pena se debruçar sobre um fenômeno que não é apenas econômico nem apenas estrutural, mas ontológico porque alimenta a própria razão de ser da cultura contemporânea. E faz prever uma sucessão de acessos de amok do mercado, financeiro ou outro.
Os ataques especulativos são como surtos de vírus desconhecidos que começam virulentos até que o organismo desenvolve os anticorpos. Então entram em cena novos microorganismos com poderes letais e recomeçam tudo outra vez.
O intervalo entre o crash de 1929 e o de 1987 foi de 58 anos. Entre o de 87 e 95 (crise mexicana) foi de oito (não incluída a crise setorial que derrubou a libra e lira). Entre 95 e 97 se passaram apenas dois anos! O pêndulo se movimenta cada vez mais velozmente.
Dado fundamental: a história não acabou nem acabará. Todos os processos nos quais está envolvido o homem são dinâmicos, portanto inesperados e infinitos. Dado segundo: como nas guerras, não existem santuários, todos são vulneráveis. Hong Kong era como a Linha Maginot (sistema defensivo francês tido como inexpugnável, contornado pelos nazistas). Capital do Império dos Tigres Asiáticos caiu com um peteleco.
Dado terceiro: a desregulamentação é o caos. E a auto-regulamentação, em que impera a selvageria, inepta. Portanto é preciso rever a retórica, pois os sistemas tidos como neoliberais, os EUA à frente, foram os mais eficazes em frear o desvario e o pânico. O "circuit breaker" (parada automática da Bolsa quando a queda ultrapassa certos limites) não é apenas um recurso informático, é um conceito ideológico, que envolve vigilância e controle do laissez-faire. Em outras palavras, intervenção. As forças de mercado precisam e devem ser vigiadas sob pena de se entronizarem o canibalismo e a destruição.
Quarto e último: a fúria especulativa funciona contra o capitalismo, cria parâmetros subjetivos de valorização e desvalorização inteiramente desligados da realidade econômica e nada contribui para o processo de criação e distribuição de riqueza. Antes do último espasmo do dragão, Allan Greenspan, presidente do Federal Reserve Board, fez dois alertas contra a "exuberância irracional" das cotações em Wall Street. Os preços caíram e logo retornaram aos mesmos níveis, impelidos pela lógica de que se há loucos dispostos a pagar um preço absurdo, por que não vender para recomprar mais adiante?
Allan Greenspan não é nem sequer um liberal. Pelas convicções que o levaram a se converter no guardião da moeda americana é um conservador. Sua oposição ao delírio especulativo funciona como ação ostensiva no mercado financeiro, para horror dos fisiocratas.
Diante do novo "delirium tremens", Greenspan aproximou-se, pelo menos em termos de diagnóstico, do veterano John Kenneth Galbraith, guru dos progressistas, que constata perigosa defasagem entre o mercado e a economia. A divergência entre os antípodas do pensamento econômico se localiza um pouco adiante: Galbraith acha que o problema está, no fundo, no "sistema"; Greenspan investe contra os investidores suicidas, que o distorcem.
O conflito cria uma situação paradoxal: as esquerdas reclamam altos índices de crescimento para diminuir o desemprego, sem se importarem com o seu efeito perverso -a ilusão bolsista e os bolsões de euforia.
Gustavo Franco, com seu inesgotável repertório de tiradas corrosivas, ameaça o mercado dizendo que ainda nem começou a abrir o seu "saco de maldades". E sentencia: "Há uma desproporcionalidade brutal entre o mundo real e o mundo (leia-se mercado) financeiro".
Aqui, interrompo a digressão em matéria econômica. O que nos interessa é a entronização da Cultura do Mercado vista como entidade racional e suprema, apta a substituir a inteligência de instituições criadas pelo homem para se defender das agressões do ambiente e conjuntura.
Em primeiro lugar, não existe "um" mercado mas o "conjunto" de mercados, aglomerações de interesses específicos, transitórios e necessariamente conflitantes. Permanente e plural é a Sociedade com os instrumentos de participação e controle que vai construindo e aperfeiçoando. Inclusive a favor do modo capitalista de organização.
Delegar aos mercados, orgânica e intrinsecamente insensatos -como foi dito por vozes insuspeitas-, a função de auto-regular equivale a colocar um leão faminto tomando conta do açougue. Ou para usar metáfora mais próxima, empregada pelo editor inglês Conrad Black, quando reclamou da presença de um editor de tablóides na presidência da Comissão de Queixas Contra a Imprensa: "É o mesmo que colocar Al Capone à frente do Imposto de Renda".
O presidente FHC, por meio de seu porta-voz, pisou na bola quando se manifestou contra qualquer diploma para regular a transmissão de informações (uma nova Lei de Imprensa). Prefere um sistema de autocontrole estabelecido pelo mercado, semelhante ao Conar (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária).
É evidente que o presidente da República não pode se colocar contra os interesses do baronato da mídia, seria suicídio político. Mas no caso de conflito entre dois poderes -Legislativo e Mídia- valeria a pena manter um distanciamento crítico.
Com todo respeito aos "profissionais da liberdade", como se autodenominam os publicitários, é preciso informar ao presidente que o Conar é uma ilusão, só funciona quando acionado (portanto não é auto-regulado). E jamais mexeu-se para punir a publicidade enganosa de muitos veículos jornalísticos, grandes anunciantes ou grandes agências.
O Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição de 88, até hoje jaz inerme, em parte porque o senador Sarney queria controlá-lo, em parte porque não se consegue estabelecer um critério de legitimidade para a escolha dos conselheiros não-corporativos.
A pregação em favor da intangibilidade do pregão é uma balela. O mercado é autodevorador, só se auto-regula quando saciado. Então é tarde, os pequenos já foram devorados no amok dos gigantes.



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