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Amok, mercados, auto-regulamentação
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Amok (ou amuck): desvario,
insanidade. Stefan Zweig popularizou o substantivo em
1922 com a novela de mesmo
nome, história de um arruinado médico alemão que se refugia no Extremo Oriente e lá,
nostálgico do Ocidente, se entrega a uma paixão doentia, a
loucura da Malásia.
Estamos em pleno amok do
mercado de capitais. Primeiro
crash on-line, a segunda-feira
negra não foi virtual. Mesmo
com as pequenas recuperações
e, a despeito da compulsão
moderna em forçar euforias e
espantar angústias, deixará cicatrizes.
A infalibilidade de um sistema doido baseado nas "leis do
mercado" está posta em questão. A auto-regulamentação
proposta por esse sistema não
tem a menor confiabilidade.
Contabilizados os prejuízos,
pessoais e coletivos, vale a pena se debruçar sobre um fenômeno que não é apenas econômico nem apenas estrutural,
mas ontológico porque alimenta a própria razão de ser
da cultura contemporânea. E
faz prever uma sucessão de
acessos de amok do mercado,
financeiro ou outro.
Os ataques especulativos são
como surtos de vírus desconhecidos que começam virulentos
até que o organismo desenvolve os anticorpos. Então entram
em cena novos microorganismos com poderes letais e recomeçam tudo outra vez.
O intervalo entre o crash de
1929 e o de 1987 foi de 58 anos.
Entre o de 87 e 95 (crise mexicana) foi de oito (não incluída
a crise setorial que derrubou a
libra e lira). Entre 95 e 97 se
passaram apenas dois anos! O
pêndulo se movimenta cada
vez mais velozmente.
Dado fundamental: a história não acabou nem acabará.
Todos os processos nos quais
está envolvido o homem são
dinâmicos, portanto inesperados e infinitos. Dado segundo:
como nas guerras, não existem
santuários, todos são vulneráveis. Hong Kong era como a Linha Maginot (sistema defensivo francês tido como inexpugnável, contornado pelos nazistas). Capital do Império dos
Tigres Asiáticos caiu com um
peteleco.
Dado terceiro: a desregulamentação é o caos. E a auto-regulamentação, em que
impera a selvageria, inepta.
Portanto é preciso rever a retórica, pois os sistemas tidos como neoliberais, os EUA à frente, foram os mais eficazes em
frear o desvario e o pânico. O
"circuit breaker" (parada automática da Bolsa quando a
queda ultrapassa certos limites) não é apenas um recurso
informático, é um conceito
ideológico, que envolve vigilância e controle do laissez-faire. Em outras palavras,
intervenção. As forças de mercado precisam e devem ser vigiadas sob pena de se entronizarem o canibalismo e a destruição.
Quarto e último: a fúria especulativa funciona contra o
capitalismo, cria parâmetros
subjetivos de valorização e
desvalorização inteiramente
desligados da realidade econômica e nada contribui para o
processo de criação e distribuição de riqueza. Antes do último espasmo do dragão, Allan
Greenspan, presidente do Federal Reserve Board, fez dois
alertas contra a "exuberância
irracional" das cotações em
Wall Street. Os preços caíram e
logo retornaram aos mesmos
níveis, impelidos pela lógica de
que se há loucos dispostos a
pagar um preço absurdo, por
que não vender para recomprar mais adiante?
Allan Greenspan não é nem
sequer um liberal. Pelas convicções que o levaram a se converter no guardião da moeda
americana é um conservador.
Sua oposição ao delírio especulativo funciona como ação
ostensiva no mercado financeiro, para horror dos fisiocratas.
Diante do novo "delirium
tremens", Greenspan aproximou-se, pelo menos em termos
de diagnóstico, do veterano
John Kenneth Galbraith, guru
dos progressistas, que constata
perigosa defasagem entre o
mercado e a economia. A divergência entre os antípodas
do pensamento econômico se
localiza um pouco adiante:
Galbraith acha que o problema está, no fundo, no "sistema"; Greenspan investe contra os investidores suicidas,
que o distorcem.
O conflito cria uma situação
paradoxal: as esquerdas reclamam altos índices de crescimento para diminuir o desemprego, sem se importarem com
o seu efeito perverso -a ilusão
bolsista e os bolsões de euforia.
Gustavo Franco, com seu
inesgotável repertório de tiradas corrosivas, ameaça o mercado dizendo que ainda nem
começou a abrir o seu "saco
de maldades". E sentencia:
"Há uma desproporcionalidade brutal entre o mundo real e
o mundo (leia-se mercado) financeiro".
Aqui, interrompo a digressão
em matéria econômica. O que
nos interessa é a entronização
da Cultura do Mercado vista
como entidade racional e suprema, apta a substituir a inteligência de instituições criadas pelo homem para se defender das agressões do ambiente
e conjuntura.
Em primeiro lugar, não existe "um" mercado mas o
"conjunto" de mercados,
aglomerações de interesses específicos, transitórios e necessariamente conflitantes. Permanente e plural é a Sociedade
com os instrumentos de participação e controle que vai
construindo e aperfeiçoando.
Inclusive a favor do modo capitalista de organização.
Delegar aos mercados, orgânica e intrinsecamente insensatos -como foi dito por vozes
insuspeitas-, a função de auto-regular equivale a colocar
um leão faminto tomando
conta do açougue. Ou para
usar metáfora mais próxima,
empregada pelo editor inglês
Conrad Black, quando reclamou da presença de um editor
de tablóides na presidência da
Comissão de Queixas Contra a
Imprensa: "É o mesmo que colocar Al Capone à frente do
Imposto de Renda".
O presidente FHC, por meio
de seu porta-voz, pisou na bola
quando se manifestou contra
qualquer diploma para regular a transmissão de informações (uma nova Lei de Imprensa). Prefere um sistema de autocontrole estabelecido pelo
mercado, semelhante ao Conar
(Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária).
É evidente que o presidente
da República não pode se colocar contra os interesses do baronato da mídia, seria suicídio
político. Mas no caso de conflito entre dois poderes -Legislativo e Mídia- valeria a pena manter um distanciamento
crítico.
Com todo respeito aos "profissionais da liberdade", como
se autodenominam os publicitários, é preciso informar ao
presidente que o Conar é uma
ilusão, só funciona quando
acionado (portanto não é auto-regulado). E jamais mexeu-se para punir a publicidade enganosa de muitos veículos jornalísticos, grandes
anunciantes ou grandes agências.
O Conselho de Comunicação
Social, previsto na Constituição de 88, até hoje jaz inerme,
em parte porque o senador
Sarney queria controlá-lo, em
parte porque não se consegue
estabelecer um critério de legitimidade para a escolha dos
conselheiros não-corporativos.
A pregação em favor da intangibilidade do pregão é uma
balela. O mercado é autodevorador, só se auto-regula quando saciado. Então é tarde, os
pequenos já foram devorados
no amok dos gigantes.
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