São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O Tao do Godot

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O melhor do chinês Gao Xingjian, prêmio Nobel de literatura do ano passado, tem menos a ver com uma resistência da literatura -embora o autor esteja imbuído desse papel de uma forma quase didática e militante ao longo do seu romance "A Montanha da Alma"- e mais com a propagação da idéia da literatura como resistência.
Ou seja, a importância e o sentido da obra passam antes pela mediação da vontade e da história pessoal do autor. Importa menos a obra em si -aquilo que está escrito, em termos absolutos- do que o sentido relativo que ela produz por reação a uma realidade.
Talvez toda literatura seja isso em última instância, embora quem gosta de literatura prefira acreditar que não. Em todo caso, é isso o que faz do Nobel um prêmio político, sobretudo quando se trata de premiar escritores de países periféricos ou exteriores à cultura ocidental.
Nascido em 1940, Gao Xingjian foi perseguido pelo regime chinês até se exilar na França em 1988. Um ano depois, foi declarado persona non grata em seu país natal, onde sua obra foi proibida. Formado em francês, defensor do modernismo literário e do teatro experimental, foi mandado para um campo de reeducação durante a Revolução Cultural, nos anos 60, vendo-se obrigado a queimar uma mala de manuscritos para que não fossem descobertos.
Em 1982, depois de ver suas peças proibidas e de ter sido diagnosticado com um câncer que na realidade não tinha, empreendeu uma caminhada de dez meses pelo interior da China, como faria um autor romântico, embora no lugar da natureza muitas vezes tenha encontrado a degradação.
É dessa experiência que nasceu "A Montanha da Alma", terminado em 1989, já na França. O livro relata o percurso do narrador, os personagens que vai encontrando e as histórias que vai ouvindo, por vilarejos, montanhas e florestas, à procura da montanha da alma.
Influenciado pela cultura ocidental contemporânea, em especial por Brecht, Beckett, o teatro do absurdo e o "nouveau roman", Gao Xingjian misturou, em "A Montanha da Alma", autobiografia e ficção, memória e imaginação, antropologia e fluxo de consciência, crítica social e sabedoria oriental, numa fragmentação narrativa que permite uma variedade de pontos de vista e o desdobramento do protagonista em eu, você, ele e ela.
Em reação às regras tacanhas do realismo socialista e ao princípio simplista e castrador da literatura à serviço de uma pretensa consciência do povo, Gao Xiangjian faz uma colagem de impressões e relatos em que os melhores fragmentos acabam roubando o interesse do todo, como se a fragmentação e os diferentes pontos de vista terminassem por reduzir o conjunto a um mosaico que não chega a formar figura nenhuma -o que, em teoria, poderia ser até interessante, já que o romance narra uma busca sem fim.
Ao escrever o romance, o autor tinha consciência das críticas que lhe fariam, tanto que inseriu um capítulo em que dialoga com um crítico e rebate uma a uma as suas tradicionais reservas. O crítico lhe diz: "Isto não é um romance! (...) Um romance deve trazer uma história completa. (...) Ah, mais um modernista que tenta em vão imitar o Ocidente". Ao que o protagonista lhe responde que "se trata, antes, de um romance oriental".
De fato, o resultado é uma combinação peculiar de Beckett com Lao-Tsé (fundador do taoísmo), em que Godot é substituído por essa montanha da alma inatingível, com direito a uns tantos clichês.
Ao final, por exemplo, o protagonista chega diante de um velho sábio "apoiado em um cajado, vestido com uma longa túnica" e pergunta onde fica a montanha da alma. A resposta, evidentemente, não podia ser outra: "Quanto mais tu andas, mais tu te afastas". Gafanhoto!
Ou quando por fim vê "sobre a faixa de sol coberta de neve uma minúscula rã. Ela pisca um olho e arregala o outro". E o narrador conclui: "Compreendo que se trata de Deus".
Mesmo se isso fosse proposital e irônico, a julgar por esse romance considerado a sua obra-prima, não seria absurdo concluir por analogia, já que Gao Xingjian também é pintor, que a sua modernidade no fundo está mais para Manabu Mabe do que para Jackson Pollock.



A Montanha da Alma
Lingshan
   
Autor: Gao Xingjian
Tradução: Marcos de Castro
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 45,90 (436 págs.)




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