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RESENHA DA SEMANA
O Tao do Godot
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O melhor do chinês Gao
Xingjian, prêmio Nobel de
literatura do ano passado, tem
menos a ver com uma resistência da literatura -embora o autor esteja imbuído desse papel
de uma forma quase didática e
militante ao longo do seu romance "A Montanha da Alma"- e mais com a propagação da idéia da literatura como
resistência.
Ou seja, a importância e o sentido da obra passam antes pela
mediação da vontade e da história pessoal do autor. Importa
menos a obra em si -aquilo
que está escrito, em termos absolutos- do que o sentido relativo que ela produz por reação a
uma realidade.
Talvez toda literatura seja isso
em última instância, embora
quem gosta de literatura prefira
acreditar que não. Em todo caso,
é isso o que faz do Nobel um
prêmio político, sobretudo
quando se trata de premiar escritores de países periféricos ou
exteriores à cultura ocidental.
Nascido em 1940, Gao Xingjian foi perseguido pelo regime
chinês até se exilar na França em
1988. Um ano depois, foi declarado persona non grata em seu
país natal, onde sua obra foi
proibida. Formado em francês,
defensor do modernismo literário e do teatro experimental, foi
mandado para um campo de
reeducação durante a Revolução Cultural, nos anos 60, vendo-se obrigado a queimar uma
mala de manuscritos para que
não fossem descobertos.
Em 1982, depois de ver suas
peças proibidas e de ter sido
diagnosticado com um câncer
que na realidade não tinha, empreendeu uma caminhada de
dez meses pelo interior da China, como faria um autor romântico, embora no lugar da natureza muitas vezes tenha encontrado a degradação.
É dessa experiência que nasceu "A Montanha da Alma", terminado em 1989, já na França. O
livro relata o percurso do narrador, os personagens que vai encontrando e as histórias que vai
ouvindo, por vilarejos, montanhas e florestas, à procura da
montanha da alma.
Influenciado pela cultura ocidental contemporânea, em especial por Brecht, Beckett, o teatro do absurdo e o "nouveau roman", Gao Xingjian misturou,
em "A Montanha da Alma", autobiografia e ficção, memória e
imaginação, antropologia e fluxo de consciência, crítica social e
sabedoria oriental, numa fragmentação narrativa que permite
uma variedade de pontos de vista e o desdobramento do protagonista em eu, você, ele e ela.
Em reação às regras tacanhas
do realismo socialista e ao princípio simplista e castrador da literatura à serviço de uma pretensa consciência do povo, Gao
Xiangjian faz uma colagem de
impressões e relatos em que os
melhores fragmentos acabam
roubando o interesse do todo,
como se a fragmentação e os diferentes pontos de vista terminassem por reduzir o conjunto a
um mosaico que não chega a
formar figura nenhuma -o
que, em teoria, poderia ser até
interessante, já que o romance
narra uma busca sem fim.
Ao escrever o romance, o autor tinha consciência das críticas
que lhe fariam, tanto que inseriu
um capítulo em que dialoga
com um crítico e rebate uma a
uma as suas tradicionais reservas. O crítico lhe diz: "Isto não é
um romance! (...) Um romance
deve trazer uma história completa. (...) Ah, mais um modernista que tenta em vão imitar o
Ocidente". Ao que o protagonista lhe responde que "se trata, antes, de um romance oriental".
De fato, o resultado é uma
combinação peculiar de Beckett
com Lao-Tsé (fundador do
taoísmo), em que Godot é substituído por essa montanha da alma inatingível, com direito a
uns tantos clichês.
Ao final, por exemplo, o protagonista chega diante de um velho sábio "apoiado em um cajado, vestido com uma longa túnica" e pergunta onde fica a montanha da alma. A resposta, evidentemente, não podia ser outra: "Quanto mais tu andas,
mais tu te afastas". Gafanhoto!
Ou quando por fim vê "sobre a
faixa de sol coberta de neve uma
minúscula rã. Ela pisca um olho
e arregala o outro". E o narrador
conclui: "Compreendo que se
trata de Deus".
Mesmo se isso fosse proposital
e irônico, a julgar por esse romance considerado a sua obra-prima, não seria absurdo concluir por analogia, já que Gao
Xingjian também é pintor, que a
sua modernidade no fundo está
mais para Manabu Mabe do que
para Jackson Pollock.
A Montanha da Alma
Lingshan
Autor: Gao Xingjian
Tradução: Marcos de Castro
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 45,90 (436 págs.)
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