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LIVRO/LANÇAMENTO
"SUBLUNAR"
Antologia do poeta carioca consolida o embate de sua geração com a linhagem de Drummond e João Cabral
Azevedo encontra sua voz ante a tradição
MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO
Não é fácil ser poeta no Brasil.
Ao contrário da prosa de ficção, que gera os best-sellers e as
adaptações para a televisão e o cinema, a forma poética raramente
consegue público de massa. A
poesia tem se mostrado refratária
à indústria cultural. O que tem o
seu lado positivo: o poeta não é
pressionado nem tentado a fazer
concessões ao mercado. Pelo bom
motivo que mercado não há.
Os leitores de poesia pertencem
à elite letrada. Entre essa elite, no
entanto, a poesia vem perdendo
relevância cultural. Para cada jovem que quer ser poeta, talvez uns
dez prefiram fazer cinema, cem
desejem ser videomakers, outros
200 gostariam de ser músicos e
500 tentariam ser atrizes e atores.
Mesmo assim, há quem insista
em ser poeta. E é aí que começam
as verdadeiras dificuldades. A primeira delas é a seguinte: o que fazer com a tradição? Todo poeta
trabalha sobre a obra dos que vieram antes. Seja para aprofundar
tendências, seja para negá-las ou
embaralhá-las.
Por "tradição" entenda-se a
sombra projetada sobre os novos
poetas por dois gigantes: Carlos
Drummond de Andrade e João
Cabral de Melo Neto. A obra deles
continua presente não como testemunho de época ou monumento estético. A poesia de ambos fala
da vida presente, bate nas pálpebras como quem bate numa porta
a socos.
"Sublunar", do carioca Carlito
Azevedo, 40, é obra de um artista
que enfrenta a tradição para encontrar a sua própria voz. Ele reúne alguns dos poemas publicados
pelo poeta, nos últimos dez anos,
em quatro livros: "Collapsus Linguae", "As Banhistas", "Sob a
Noite Física" e "Versos de Circunstância".
No prefácio, Azevedo avisa que
"Sublunar" não é nem obra completa nem antologia. Ele excluiu
poemas, mas não escolheu apenas
os melhores porque seria obrigado, como afirma, "a um rigor
muito maior nos cortes".
O poeta não usou a apresentação cronológica. Agrupou as poesias em seis blocos de afinidades
temáticas ou formais. O efeito
mais notável da nova montagem é
invisível: não sobrou em "Sublunar" nenhum poema influenciado pela poesia concreta.
Em contrapartida, ficaram
aqueles nos quais se percebe algo
da imagética de Manuel Bandeira.
Há um pouco do poeta pernambucano na maneira como Azevedo descreve coisas e corpos, situando-os como em pinturas. Na
série "As Banhistas", nus femininos se referem de Goya a Rothko,
passando por Hélio Oiticica ("parangolé de brumas").
A imagética decalcada de Bandeira não visa deslumbrar, como
observou Flora Sussekind em "A
Voz e a Série". O rigor construtivo
trava eventuais infusões líricas,
que a custo se materializam:
"antes de te misturares ao vendaval das vendas
à ânsia da mercancia
cola o teu ouvido ao dela:
escutarás o ruído do mar
como eu neste instante
na ilha de paquetá
ou na
ilha de ptyx?/".
A interrogação final, o "ptyx"
mallarmaico remete ao Drummond com o qual Azevedo mais
se identifica, o de "Lição de Coisas", livro em que Drummond radicalizou procedimentos de sua
poética para violar e desintegrar
os vocábulos, coisificando-os.
Desabusado, Azevedo enfrenta
Drummond no terreno de "No
Meio do Caminho", um dos poemas mais conhecidos do poeta
mineiro. Em "Fractal", ele transforma o verso "No meio do caminho tinha uma pedra" em:
"No meio da faixa de terreno
destinada a trânsito tinha um mineral da natureza das rochas duro
e sólido".
A sequência, "Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida
de minhas retinas tão fatigadas",
vira:
"Nunca me esquecerei desse
acontecimento na vida de minhas
membranas oculares internas em
que estão as células nervosas que
recebem estímulos luminosos e
onde se projetam as imagens produzidas pelo sistema ótico ocular,
tão fatigadas".
O efeito obtido não é apenas engraçado. A dicionarização de "caminho", "pedra" e "retinas" reforça a concretude dos substantivos: o discurso palavroso objetiva
as palavras.
É de dureza semelhante o João
Cabral com quem Azevedo dialoga, o de "Educação pela Pedra" (o
da objetivação extrema, o da reiteração da cabra e da pedra) e o de
"Museu de Tudo" (o das homenagens lapidares). Sente-se mais a
presença de Cabral do que a de
Drummond.
Há no livro um exagero de referências. Há aqui e ali sinais de esterilidade metalinguística. Há às
vezes um preciosismo técnico
com jeito de exibição virtuosíssima. Há cantadas às mulheres
amadas com um quê de insinceridade.
Isto posto, existe em "Sublunar"
o que importa: uma voz. Um jeito
poético de ver as pessoas e o mundo. Um poeta amadurecendo e se
tornando complexo.
Sublunar (1991-2001)
Autor: Carlito Azevedo
Editora: 7 Letras
Quanto: R$18 (102 págs.)
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