São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

"SUBLUNAR"

Antologia do poeta carioca consolida o embate de sua geração com a linhagem de Drummond e João Cabral

Azevedo encontra sua voz ante a tradição

MARIO SERGIO CONTI
DA SUCURSAL DO RIO

Não é fácil ser poeta no Brasil. Ao contrário da prosa de ficção, que gera os best-sellers e as adaptações para a televisão e o cinema, a forma poética raramente consegue público de massa. A poesia tem se mostrado refratária à indústria cultural. O que tem o seu lado positivo: o poeta não é pressionado nem tentado a fazer concessões ao mercado. Pelo bom motivo que mercado não há.
Os leitores de poesia pertencem à elite letrada. Entre essa elite, no entanto, a poesia vem perdendo relevância cultural. Para cada jovem que quer ser poeta, talvez uns dez prefiram fazer cinema, cem desejem ser videomakers, outros 200 gostariam de ser músicos e 500 tentariam ser atrizes e atores.
Mesmo assim, há quem insista em ser poeta. E é aí que começam as verdadeiras dificuldades. A primeira delas é a seguinte: o que fazer com a tradição? Todo poeta trabalha sobre a obra dos que vieram antes. Seja para aprofundar tendências, seja para negá-las ou embaralhá-las.
Por "tradição" entenda-se a sombra projetada sobre os novos poetas por dois gigantes: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. A obra deles continua presente não como testemunho de época ou monumento estético. A poesia de ambos fala da vida presente, bate nas pálpebras como quem bate numa porta a socos.
"Sublunar", do carioca Carlito Azevedo, 40, é obra de um artista que enfrenta a tradição para encontrar a sua própria voz. Ele reúne alguns dos poemas publicados pelo poeta, nos últimos dez anos, em quatro livros: "Collapsus Linguae", "As Banhistas", "Sob a Noite Física" e "Versos de Circunstância".
No prefácio, Azevedo avisa que "Sublunar" não é nem obra completa nem antologia. Ele excluiu poemas, mas não escolheu apenas os melhores porque seria obrigado, como afirma, "a um rigor muito maior nos cortes".
O poeta não usou a apresentação cronológica. Agrupou as poesias em seis blocos de afinidades temáticas ou formais. O efeito mais notável da nova montagem é invisível: não sobrou em "Sublunar" nenhum poema influenciado pela poesia concreta.
Em contrapartida, ficaram aqueles nos quais se percebe algo da imagética de Manuel Bandeira. Há um pouco do poeta pernambucano na maneira como Azevedo descreve coisas e corpos, situando-os como em pinturas. Na série "As Banhistas", nus femininos se referem de Goya a Rothko, passando por Hélio Oiticica ("parangolé de brumas").
A imagética decalcada de Bandeira não visa deslumbrar, como observou Flora Sussekind em "A Voz e a Série". O rigor construtivo trava eventuais infusões líricas, que a custo se materializam:
"antes de te misturares ao vendaval das vendas
à ânsia da mercancia
cola o teu ouvido ao dela:
escutarás o ruído do mar
como eu neste instante
na ilha de paquetá
ou na
ilha de ptyx?/".
A interrogação final, o "ptyx" mallarmaico remete ao Drummond com o qual Azevedo mais se identifica, o de "Lição de Coisas", livro em que Drummond radicalizou procedimentos de sua poética para violar e desintegrar os vocábulos, coisificando-os.
Desabusado, Azevedo enfrenta Drummond no terreno de "No Meio do Caminho", um dos poemas mais conhecidos do poeta mineiro. Em "Fractal", ele transforma o verso "No meio do caminho tinha uma pedra" em:
"No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido".
A sequência, "Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas", vira:
"Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas membranas oculares internas em que estão as células nervosas que recebem estímulos luminosos e onde se projetam as imagens produzidas pelo sistema ótico ocular, tão fatigadas".
O efeito obtido não é apenas engraçado. A dicionarização de "caminho", "pedra" e "retinas" reforça a concretude dos substantivos: o discurso palavroso objetiva as palavras.
É de dureza semelhante o João Cabral com quem Azevedo dialoga, o de "Educação pela Pedra" (o da objetivação extrema, o da reiteração da cabra e da pedra) e o de "Museu de Tudo" (o das homenagens lapidares). Sente-se mais a presença de Cabral do que a de Drummond.
Há no livro um exagero de referências. Há aqui e ali sinais de esterilidade metalinguística. Há às vezes um preciosismo técnico com jeito de exibição virtuosíssima. Há cantadas às mulheres amadas com um quê de insinceridade.
Isto posto, existe em "Sublunar" o que importa: uma voz. Um jeito poético de ver as pessoas e o mundo. Um poeta amadurecendo e se tornando complexo.


Sublunar (1991-2001)
    
Autor: Carlito Azevedo
Editora: 7 Letras
Quanto: R$18 (102 págs.)




Texto Anterior: "O Prisioneiro - A Vida de Antonio Gramsci" Debilidade teórica obscurece biografia
Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: O Tao do Godot
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.