UOL


São Paulo, segunda-feira, 01 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Urgência em entender imprevisível da guerra faz obra atual

FELIPE CHAIMOVICH
CRÍTICO DA FOLHA

"Goya" é livro de guerra. Robert Hughes busca compreender as incursões bissextas do artista espanhol pela figuração do terror. Para tal, baseia-se na própria vida.
Hughes sofreu acidente automobilístico que quase o matou em 1999. A descrição do lento processo de recuperação, somada à morte do filho, abre o volume, primeiro escrito desde então. Numa das cenas recordadas, Hughes encontra Goya durante uma alucinação comatosa e, após despertar, compreende que deveria escrever um livro sobre ele.
O embate pictórico de Goya com os temas da dor, morte, crueldade e superstição torna-se valor superior na análise biográfica evolucionista de Hughes. Embora baseado em conhecimento histórico, o autor projeta uma grade antecipatória sobre o que veio antes de "Caprichos" (1796).
Gera-se uma irregularidade entre a primeira parte e a segunda. Entre o primeiro capítulo e o quinto, a rica paisagem histórico-política é contraposta à interpretação anacrônica de uma obra visivelmente cortesã e acadêmica.
Goya é ambicioso e tem acesso à corte por casamento de interesse, que lhe rende cargo na Fábrica Real de Tapetes, entre 1775 e 1792. Hughes mostra-se indignado contra o maneirista "Cristo Crucificado" (1780), feito para o ingresso na Academia Real de Pintura. Signos da singularidade por vir sobrepõem-se a uma análise insuficiente dos códigos seguidos pelo primeiro pintor do rei.
A virada da segunda parte começa com a Revolução Francesa. Abre-se a última fase de Goya, entre os 60 e a morte, aos 82.
Os mecenas do artista viverão um período de mudanças que dura até 1822. Goya, habitando Madri, foi testemunha da queda dos Bourbons, do império napoleônico, da guerrilha popular, da constituinte liberal e da restauração reacionária. E de seus horrores.
A surdez, advinda em 1793, é fonte de mais ênfase de Hughes no aspecto psicológico da mudança estética do artista.
Na velhice, a experiência das guerras contínuas gera produções privadas em que crueza ou deformação ganham formas maduras. As matrizes dos "Desastres da Guerra" (1808-14) nunca foram impressas em vida, e os murais negros da Quinta do Surdo ficavam na vila particular.
Por outro lado, continuaram as ligações cortesãs, sobretudo após a volta tirânica de Fernando 7º, em 1814. Assim, a posição dialética de Goya confere densidade aos capítulos finais, concluídos com a morte do homenageado em 1827.
Hughes escreve desde o mundo anglo-saxão pós-Torres Gêmeas. A urgência em compreender a irracionalidade dos imprevisíveis da guerra torna a leitura atual.


Goya
   
Autor: Robert Hughes
Editoras: Harvill Press (Inglaterra)/ Knopf (EUA)




Texto Anterior: A dor da criação
Próximo Texto: Frase
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.