São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Ensaios ficcionais sobre a cegueira

Nas linhas de "Histórias de Literatura e Cegueira", a suposta fidelidade aos fatos se impõe à estrutura do romance

TENDO COMO personagens três grandes escritores do século 20 -James Joyce, Jorge Luis Borges e João Cabral de Melo Neto-, "Histórias de Literatura e Cegueira", de Julián Fuks, lança mão de um procedimento consagrado pelo romance pós-moderno: as contaminações entre fato e ficção, biografia e invenção. O resultado, porém, está bem distante de um tipo de prosa experimental que, nos anos 60 e 70, pretendia sepultar o romance de corte mais realista, regido por princípios de causalidade e verossimilhança.
Não é mera coincidência que o texto de orelha seja assinado por Silviano Santiago, que nos livros "Em Liberdade" e "Viagem ao México" se apropriou, respectivamente, das biografias de Graciliano Ramos e Antonin Artaud para criar labirintos metalingüísticos.
No caso dos ficcionistas pós-modernos (dentre os quais Santiago), a narrativa é uma espécie de "trompe l'oeil": como nas pinturas que simulavam portas ou janelas sobre as paredes dos palácios barrocos, o dado real se confunde com eventos fictícios, num triunfo da ilusão.
Com Fuks, não há esse cancelamento de fronteiras. Em sua opção temática -a vida de três autores marcados pela cegueira-, a tópica do olhar aparece não como metáfora relativista, mas como ponto de inflexão das trajetórias criativas. Tanto é assim que as fontes das referências biográficas e citações vêm relacionadas no final, como a sugerir que o autor nada acrescentou àquilo que já se conhecia de Joyce, Borges e Cabral, que não pretende turvar a vista do leitor ou criar armadilhas.
Vem daí a força desse livro que opera por condensações e deslocamentos: sua suposta fidelidade aos fatos se impõe à estrutura do romance, explicitando a intencionalidade de quem os seleciona. Ao fazê-lo, Fuks desliza do ensaio para a ficção, mostrando que o modo de articular acontecimentos é algo tão fundamental para a prosa literária quanto a imaginação ou o trabalho com a linguagem.
Borges sonhando nos corredores da Biblioteca Nacional ("magnífica ironia" de um Deus que lhe deu "a um só tempo os livros e a noite"); João Cabral recluso no silêncio e no sono, incapaz de escrever após a perda da visão (ou fazendo, ao final da vida, essa profissão de fé: "poema é coisa de ver/ é coisa sobre um espaço"); Joyce compondo epifanias para revelar a essência das coisas triviais que seus olhos podres mal percebem.
Dispostos nessa ordem, os três capítulos fazem da cegueira o epicentro de mitologias pessoais que vão sendo recolhidas em sutis paráfrases estilísticas. Poderiam ser lidos como contos independentes, mas os vestígios que uma narrativa deixa na outra mostram como todo escritor elege um ponto de fuga de onde contempla as coisas. Nesse caso, por "magnífica ironia", uma visão da literatura proporcionada pela cegueira.


HISTÓRIAS DE LITERATURA E CEGUEIRA
Autor:
Julián Fuks
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (162 págs.)
Avaliação: ótimo


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