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Crítica/"O Médico Doente"
Drauzio registra experiência como paciente complicado
Em "O Médico Doente", escritor comenta sofrimento decorrente da febre amarela
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Médicos são pacientes
difíceis. Ouvi esta
frase incontáveis vezes, tanto no curso de medicina
como na minha carreira profissional. A afirmativa não deixa
de ter fundamento: em primeiro lugar, médico em geral procura ajuda dos colegas quando
o seu caso é complicado (os
problemas simples ele mesmo
os trata).
Em segundo lugar, os pacientes médicos são notoriamente
rebeldes, por causa do conhecimento que detêm e também
pela onipotência que, desde
tempos imemoriais, é parte da
profissão, ainda que tal onipotência funcione mais como
uma defesa contra a angústia
do que qualquer outra coisa.
A experiência da doença em
médicos é, portanto, reveladora; já oportunizou vários textos,
e mesmo uma antologia chamada "Sick Doctors" (médicos
doentes), de 1971, coordenada
pelo médico americano Raymond Greene. Em "O Médico
Doente", Drauzio Varella narra
sua própria e sombria vivência
como enfermo.
Poucas pessoas em nosso
país poderiam fazê-lo tão bem.
Drauzio é, em primeiro lugar,
um grande profissional, um
grande comunicador e educador (como o demonstra seu trabalho na Folha e na TV Globo e
em seus livros anteriores) e um
grande ser humano, alguém
que vive, na prática, a humanização da medicina.
Aliás, foi exatamente por
causa de seus ideais que Drauzio adoeceu. Seu trabalho leva-o com freqüência à Amazônia
e, voltando de uma dessas viagens, começou a ter sinais e
sintomas de uma enfermidade
obviamente grave.
O diagnóstico, febre amarela,
só foi feito depois de vários dias
de evolução e coloca uma questão levantada pelo próprio
Drauzio e à qual ele, com sua
franqueza, tratou de responder: como se explica que um
médico tão ligado à atividade
de educação em saúde não tenha se vacinado contra uma
doença para a qual existe imunizante eficaz e rotineiro?
Ele responde: "Aceitei com
resignação mesmo a irresponsabilidade de penetrar a floresta -habitada por mosquitos e
macacos infectados- sem tomar a vacina, procedimento
inadmissível para qualquer
pessoa esclarecida, e muito
mais para mim, envolvido até
os ossos em programas de educação em saúde pública." Um
exemplar mea culpa, que certamente poupará muitas pessoas
de um sofrimento semelhante.
E foi um grande sofrimento.
A doença, brutal, devastou-lhe
o organismo. O prognóstico era
muito ruim e a equipe que o
atendia mal conseguia disfarçar o pessimismo. Drauzio sabia disso: "Nada mais tinha importância. Nada mais me ligava
a ninguém. Nem meu destino
me interessava. Morrer é tão
fácil, concluí." Não o acometeu
nenhuma crise religiosa ou
existencial: sua atitude era de
completo estoicismo.
No relato, ele evita a grandiloqüência que, nestes relatos, é
uma tentação constante: "Convivi com pacientes que mudaram radicalmente de vida ao
senti-la ameaçada (...). Infelizmente, em meu caso a ameaça
de perder a vida não trouxe
transformações filosóficas, iluminações espirituais, nem mudanças práticas significativas.
(...) Fazer força para lembrar
todos os dias que sou um sobrevivente (...) ajudou-me a
acalmar inquietações, a aceitar
limites pessoais e a procurar
desenvolver discernimento para me concentrar no que considero essencial nas relações afetivas e no trabalho. Gostaria de
dizer que me tornei mais sábio,
mais tolerante, mais espiritualizado, mais feliz do que já era,
mas, até onde consigo enxergar, não acho que me tornei
melhor. Nem pior. Embora tenha sido decepcionante não ter
vislumbrado a luz do fim do túnel, de certa forma foi uma descoberta tranqüilizadora emergir da febre amarela com a
consciência de que estava disposto apenas a modificar o horário de trabalho".
"O Médico Doente" deveria
ser leitura obrigatória para todos aqueles que se dedicam a
cuidar dos outros e para as pessoas em geral.
O MÉDICO DOENTE
Autor: Drauzio Varella
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (136 págs.)
Avaliação: ótimo
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