São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2007

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Crítica/"O Médico Doente"

Drauzio registra experiência como paciente complicado

Em "O Médico Doente", escritor comenta sofrimento decorrente da febre amarela

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Médicos são pacientes difíceis. Ouvi esta frase incontáveis vezes, tanto no curso de medicina como na minha carreira profissional. A afirmativa não deixa de ter fundamento: em primeiro lugar, médico em geral procura ajuda dos colegas quando o seu caso é complicado (os problemas simples ele mesmo os trata).
Em segundo lugar, os pacientes médicos são notoriamente rebeldes, por causa do conhecimento que detêm e também pela onipotência que, desde tempos imemoriais, é parte da profissão, ainda que tal onipotência funcione mais como uma defesa contra a angústia do que qualquer outra coisa.
A experiência da doença em médicos é, portanto, reveladora; já oportunizou vários textos, e mesmo uma antologia chamada "Sick Doctors" (médicos doentes), de 1971, coordenada pelo médico americano Raymond Greene. Em "O Médico Doente", Drauzio Varella narra sua própria e sombria vivência como enfermo.
Poucas pessoas em nosso país poderiam fazê-lo tão bem. Drauzio é, em primeiro lugar, um grande profissional, um grande comunicador e educador (como o demonstra seu trabalho na Folha e na TV Globo e em seus livros anteriores) e um grande ser humano, alguém que vive, na prática, a humanização da medicina.
Aliás, foi exatamente por causa de seus ideais que Drauzio adoeceu. Seu trabalho leva-o com freqüência à Amazônia e, voltando de uma dessas viagens, começou a ter sinais e sintomas de uma enfermidade obviamente grave. O diagnóstico, febre amarela, só foi feito depois de vários dias de evolução e coloca uma questão levantada pelo próprio Drauzio e à qual ele, com sua franqueza, tratou de responder: como se explica que um médico tão ligado à atividade de educação em saúde não tenha se vacinado contra uma doença para a qual existe imunizante eficaz e rotineiro?
Ele responde: "Aceitei com resignação mesmo a irresponsabilidade de penetrar a floresta -habitada por mosquitos e macacos infectados- sem tomar a vacina, procedimento inadmissível para qualquer pessoa esclarecida, e muito mais para mim, envolvido até os ossos em programas de educação em saúde pública." Um exemplar mea culpa, que certamente poupará muitas pessoas de um sofrimento semelhante.
E foi um grande sofrimento. A doença, brutal, devastou-lhe o organismo. O prognóstico era muito ruim e a equipe que o atendia mal conseguia disfarçar o pessimismo. Drauzio sabia disso: "Nada mais tinha importância. Nada mais me ligava a ninguém. Nem meu destino me interessava. Morrer é tão fácil, concluí." Não o acometeu nenhuma crise religiosa ou existencial: sua atitude era de completo estoicismo.
No relato, ele evita a grandiloqüência que, nestes relatos, é uma tentação constante: "Convivi com pacientes que mudaram radicalmente de vida ao senti-la ameaçada (...). Infelizmente, em meu caso a ameaça de perder a vida não trouxe transformações filosóficas, iluminações espirituais, nem mudanças práticas significativas.
(...) Fazer força para lembrar todos os dias que sou um sobrevivente (...) ajudou-me a acalmar inquietações, a aceitar limites pessoais e a procurar desenvolver discernimento para me concentrar no que considero essencial nas relações afetivas e no trabalho. Gostaria de dizer que me tornei mais sábio, mais tolerante, mais espiritualizado, mais feliz do que já era, mas, até onde consigo enxergar, não acho que me tornei melhor. Nem pior. Embora tenha sido decepcionante não ter vislumbrado a luz do fim do túnel, de certa forma foi uma descoberta tranqüilizadora emergir da febre amarela com a consciência de que estava disposto apenas a modificar o horário de trabalho".
"O Médico Doente" deveria ser leitura obrigatória para todos aqueles que se dedicam a cuidar dos outros e para as pessoas em geral.


O MÉDICO DOENTE
Autor:
Drauzio Varella
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (136 págs.)
Avaliação: ótimo


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