|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O monólogo do grande canalha brasileiro
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
"Não... Eu não sou um canalha... Isso seria uma visão muito simplista da minha personalidade."
O canalha estava de cuecas,
paletó e gravata. Examinava- se
com delícia, dialogando consigo
mesmo no espelho. Ele tinha feito o que um passante desatento
poderia apodar displicentemente de "canalhice". Mas ele
se julgava mais complexo.
Ele tinha falsificado cartas de
crédito de bancos das Bahamas,
tinha mandado grampear conversas de executivos do BNDES,
mas ninguém tinha provas. A
contemplação no espelho lhe
dava uma longínqua culpa,
misturada a um orgulho perverso.
Ele sonegava, não dava esmola, fazia lobbies corruptos, inventava mutretas geniais nos
bastidores das finanças, jogava
muita mala preta de dólares
nas mãos de políticos, não respeitava nem as cunhadas, em
suma, sabia que era chamado
nas esquinas e botecos de "canalha" ou, por outros mais radicais, de "escroto".
No entanto, se olhava com carinho e volúpia no espelho. Ele
tinha algo de aventureiro heróico. Brilhava- lhe em volta da
barriguinha, por entre as pernas cabeludas, uma beleza solitária que ninguém percebia.
Só ele sabia de sua grandeza.
Seus pelinhos se eriçavam de excitação diante de seu segredo.
"Ninguém sabe que fui eu.
Ninguém jamais poderá me incriminar. Como dizia Sade (um
de seus ídolos): "Só crime pode
nos trazer o prazer total no sexo
e no amor!'."
Uma felicidade insuportável
lhe apertava a garganta, dava-
lhe vontade de se abraçar e beijar na infinita solidão de herói
de si mesmo... "Eu sabotei um
país inteiro!" Um arrepio lhe
apertou os ovos, sua alegria
crescia.
"Meu "ethos' é autêntico. Eu
não tenho uma formação cultural falsa, feita de Sorbonne, conceitos morais chiques, cacoetes
de intelectuais; eu nasci na Colônia, eu tenho 500 anos de pedigree, avô ladrão, bisavô traficante de escravos e tataravô degredado. Eu tenho raízes. Há
em mim uma verdade darwinista, um impulso animal muito mais profundo do que estes
ralos pudores democráticos...
Aliás, eu acho a democracia
uma delícia. Que barato! Como
é fácil usar a democracia... Ela
não oferece perigos... A ditadura foi boa comigo, não posso reclamar, recebi muito dos militares, dos tecnoburocratas, meus
quintas-colunas lá dentro do
"pudê', mas... Sei lá... Aquele poder todo na mão de milicos. De
repente podiam invocar com
você...
A democracia, não... É ótimo,
eu fico protegido por um emaranhado de leis malandras, forjadas por meus avós... E esses
babacas destes jornalistas ficam
pensando que a democracia é
esta festa de arromba de grampos e fofocas... Esses escândalos
periódicos dão ao povo a impressão de "transparência', têm
a vantagem de desviar a atenção das reformas essenciais e
mantêm as instituições oligárquicas intactas...
Eu engano todo mundo: os
que se pensam "progressistas'
exultam e se esquecem que seu
triunfo veio de minha esperteza
reacionária... Eu engano as esquerdas que acham que houve
"avanço', eu engano os bons...
Ah, ah... É uma delícia! Eu uni o
país contra ele mesmo! Eu fundei uma ciência moderna: a "canalhogia' ou, talvez, a "filhadaputice'. Sem estudá-la, não se
entende o Brasil de hoje.
Eu sou muito mais sagaz do
que este bobo do FHC. Ele devia
me agradecer, porque eu tenho
ensinado muito a ele; ele é iluminista, com aquela certeza na
"razão', no "bem' de sua ingênua
sociologia. Eu sou pós-moderno, encarno em mim as verdades sórdidas do meu tempo, a
"realpolitik' da criminalidade
global, a frieza do Eu, a impoluta lógica do egoísmo!
Vejam quanta luz eu trouxe
ao país: com meus "grampos' (o
"grampo' é apenas minha mais
recente tática, como já foram os
"precatórios', os "superfaturamentos', tantas coisas...), eu me
vinguei desses garotos metidos
a scholars do bem público, eu
entretive a população com um
surto de notícias fascinantes, eu
consegui atrasar a solução dos
problemas principais que nos
atingem, saí no "The New York
Times', dei assunto para colunistas exercerem suas diatribes
éticas, estes babacas úteis que
pensam estar defendendo a democracia!!...
Ah... É maravilhoso, porque
eu crio também um beco sem
saída para os honestos, que, para fazer face a mim, são obrigados a agir tortamente, como eu,
para defender o bem público, e
aí eu plaff!, taco-lhes um "grampo' e, pronto, eles viram os "desonestos' e eu resplandeço no
meu anonimato.
Ahhh... O delicioso "frisson' de
saber-se olhado nos restaurantes de luxo... Os homens e mulheres me vêem com medo e gula: "Olha... Lá vai o canalha!',
dizem, e eu sei que eles sussurram fascinados por meu cinismo sorridente. Todos me puxam o saco, os maîtres se arremessam para minhas gorjetas...
E eu vou flutuando, certo de
meu vanguardismo, de minha
ruptura com o politicamente
correto, da minha defesa da tradição endêmica da corrupção
nacional! Eu me sinto um "elo'
entre o velho e o novo. A velha
"cordialidade' escrota tradicional e o neocinismo global.
Em meio aos prazeres simples
que me reservo, os meus quadros, meus jatinhos, minhas
prostitutas, os vinhos que eu bebo, eu tenho essa volúpia secreta, eu me sinto como um poeta
da contracultura, um inventor
contemplando a marcha da sordidez nacional, os "precatórios'
impunes e felizes, os empresários pagando o INSS com fazendas imaginárias...
Ah... É uma saga épica emocionante, a cavalgada dos canalhas, que acabam ressarcidos
pelo Estado por danos morais...
Eu trago luz! Eu sou mais eu!".
E o canalha rebolava na frente
do espelho, em fremente lua-
de-mel consigo mesmo, beijando-se, rindo e pulando, dançando como um louco sobre suas
perninhas. E fazia caretas, piscava, gania, gemia e, por baixo
da cueca, crescia sua excitação.
E ele ria e chorava, enquanto o
orgasmo vinha chegando como
uma canção longínqua:
"Eu não sou de direita nem de
esquerda, nem de centro nem
neoliberal, nem porra nenhuma... Eu sou mais eu... Eu sou o
orgulho de não ter sentimentos,
eu sou a inércia primitiva do
país, eu não sou nem a burguesia, nem classe nenhuma, eu
sou a pasta essencial de que tudo é feito, eu sou a história paralítica do Brasil, eu tenho a
grandeza da vista curta, a beleza dos interesses mesquinhos,
eu tenho a sabedoria dos porcos, das toupeiras e dos roedores.
Não permitirei que se implante aqui nenhuma nova ordem
com cheiro de práticas modernas de anglo-saxões. Eu defenderei minhas tradições e meus
privilégios... Eu sou nacionalista, tenho raízes, sou indestrutível! O canalha brasileiro é antes
de tudo um forte. Eu sou o canalha brasileiro!"
E o desgraçado se esvaía de
prazer diante do espelho, enquanto, lá fora, o país andava
para trás.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|