São Paulo, terça, 1 de dezembro de 1998

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O monólogo do grande canalha brasileiro

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

"Não... Eu não sou um canalha... Isso seria uma visão muito simplista da minha personalidade."
O canalha estava de cuecas, paletó e gravata. Examinava- se com delícia, dialogando consigo mesmo no espelho. Ele tinha feito o que um passante desatento poderia apodar displicentemente de "canalhice". Mas ele se julgava mais complexo.
Ele tinha falsificado cartas de crédito de bancos das Bahamas, tinha mandado grampear conversas de executivos do BNDES, mas ninguém tinha provas. A contemplação no espelho lhe dava uma longínqua culpa, misturada a um orgulho perverso.
Ele sonegava, não dava esmola, fazia lobbies corruptos, inventava mutretas geniais nos bastidores das finanças, jogava muita mala preta de dólares nas mãos de políticos, não respeitava nem as cunhadas, em suma, sabia que era chamado nas esquinas e botecos de "canalha" ou, por outros mais radicais, de "escroto".
No entanto, se olhava com carinho e volúpia no espelho. Ele tinha algo de aventureiro heróico. Brilhava- lhe em volta da barriguinha, por entre as pernas cabeludas, uma beleza solitária que ninguém percebia.
Só ele sabia de sua grandeza. Seus pelinhos se eriçavam de excitação diante de seu segredo.
"Ninguém sabe que fui eu. Ninguém jamais poderá me incriminar. Como dizia Sade (um de seus ídolos): "Só crime pode nos trazer o prazer total no sexo e no amor!'."
Uma felicidade insuportável lhe apertava a garganta, dava- lhe vontade de se abraçar e beijar na infinita solidão de herói de si mesmo... "Eu sabotei um país inteiro!" Um arrepio lhe apertou os ovos, sua alegria crescia.
"Meu "ethos' é autêntico. Eu não tenho uma formação cultural falsa, feita de Sorbonne, conceitos morais chiques, cacoetes de intelectuais; eu nasci na Colônia, eu tenho 500 anos de pedigree, avô ladrão, bisavô traficante de escravos e tataravô degredado. Eu tenho raízes. Há em mim uma verdade darwinista, um impulso animal muito mais profundo do que estes ralos pudores democráticos...
Aliás, eu acho a democracia uma delícia. Que barato! Como é fácil usar a democracia... Ela não oferece perigos... A ditadura foi boa comigo, não posso reclamar, recebi muito dos militares, dos tecnoburocratas, meus quintas-colunas lá dentro do "pudê', mas... Sei lá... Aquele poder todo na mão de milicos. De repente podiam invocar com você...
A democracia, não... É ótimo, eu fico protegido por um emaranhado de leis malandras, forjadas por meus avós... E esses babacas destes jornalistas ficam pensando que a democracia é esta festa de arromba de grampos e fofocas... Esses escândalos periódicos dão ao povo a impressão de "transparência', têm a vantagem de desviar a atenção das reformas essenciais e mantêm as instituições oligárquicas intactas...
Eu engano todo mundo: os que se pensam "progressistas' exultam e se esquecem que seu triunfo veio de minha esperteza reacionária... Eu engano as esquerdas que acham que houve "avanço', eu engano os bons... Ah, ah... É uma delícia! Eu uni o país contra ele mesmo! Eu fundei uma ciência moderna: a "canalhogia' ou, talvez, a "filhadaputice'. Sem estudá-la, não se entende o Brasil de hoje.
Eu sou muito mais sagaz do que este bobo do FHC. Ele devia me agradecer, porque eu tenho ensinado muito a ele; ele é iluminista, com aquela certeza na "razão', no "bem' de sua ingênua sociologia. Eu sou pós-moderno, encarno em mim as verdades sórdidas do meu tempo, a "realpolitik' da criminalidade global, a frieza do Eu, a impoluta lógica do egoísmo!
Vejam quanta luz eu trouxe ao país: com meus "grampos' (o "grampo' é apenas minha mais recente tática, como já foram os "precatórios', os "superfaturamentos', tantas coisas...), eu me vinguei desses garotos metidos a scholars do bem público, eu entretive a população com um surto de notícias fascinantes, eu consegui atrasar a solução dos problemas principais que nos atingem, saí no "The New York Times', dei assunto para colunistas exercerem suas diatribes éticas, estes babacas úteis que pensam estar defendendo a democracia!!...
Ah... É maravilhoso, porque eu crio também um beco sem saída para os honestos, que, para fazer face a mim, são obrigados a agir tortamente, como eu, para defender o bem público, e aí eu plaff!, taco-lhes um "grampo' e, pronto, eles viram os "desonestos' e eu resplandeço no meu anonimato.
Ahhh... O delicioso "frisson' de saber-se olhado nos restaurantes de luxo... Os homens e mulheres me vêem com medo e gula: "Olha... Lá vai o canalha!', dizem, e eu sei que eles sussurram fascinados por meu cinismo sorridente. Todos me puxam o saco, os maîtres se arremessam para minhas gorjetas...
E eu vou flutuando, certo de meu vanguardismo, de minha ruptura com o politicamente correto, da minha defesa da tradição endêmica da corrupção nacional! Eu me sinto um "elo' entre o velho e o novo. A velha "cordialidade' escrota tradicional e o neocinismo global.
Em meio aos prazeres simples que me reservo, os meus quadros, meus jatinhos, minhas prostitutas, os vinhos que eu bebo, eu tenho essa volúpia secreta, eu me sinto como um poeta da contracultura, um inventor contemplando a marcha da sordidez nacional, os "precatórios' impunes e felizes, os empresários pagando o INSS com fazendas imaginárias...
Ah... É uma saga épica emocionante, a cavalgada dos canalhas, que acabam ressarcidos pelo Estado por danos morais... Eu trago luz! Eu sou mais eu!".
E o canalha rebolava na frente do espelho, em fremente lua- de-mel consigo mesmo, beijando-se, rindo e pulando, dançando como um louco sobre suas perninhas. E fazia caretas, piscava, gania, gemia e, por baixo da cueca, crescia sua excitação. E ele ria e chorava, enquanto o orgasmo vinha chegando como uma canção longínqua:
"Eu não sou de direita nem de esquerda, nem de centro nem neoliberal, nem porra nenhuma... Eu sou mais eu... Eu sou o orgulho de não ter sentimentos, eu sou a inércia primitiva do país, eu não sou nem a burguesia, nem classe nenhuma, eu sou a pasta essencial de que tudo é feito, eu sou a história paralítica do Brasil, eu tenho a grandeza da vista curta, a beleza dos interesses mesquinhos, eu tenho a sabedoria dos porcos, das toupeiras e dos roedores.
Não permitirei que se implante aqui nenhuma nova ordem com cheiro de práticas modernas de anglo-saxões. Eu defenderei minhas tradições e meus privilégios... Eu sou nacionalista, tenho raízes, sou indestrutível! O canalha brasileiro é antes de tudo um forte. Eu sou o canalha brasileiro!"
E o desgraçado se esvaía de prazer diante do espelho, enquanto, lá fora, o país andava para trás.



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