São Paulo, terça, 1 de dezembro de 1998

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DISCO - LANÇAMENTO
"Pianistas' é monumento à memória da música

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

É o maior lançamento do ano, mas isso ainda é pouco. "Great Pianists of the 20th Century" (Grandes Pianistas do Século 20) é o "maior projeto jamais realizado na história da música gravada", como anuncia a Philips, em tons de justificada auto-estima. São nada menos que 200 CDs: cem álbuns duplos, reunindo 72 grandes pianistas do século, com os direitos dos artistas cedidos por 25 gravadoras -incluindo Deutsche Grammophon, Sony, EMI, Teldec e Decca.
Com patrocínio da Steinway (a mais renomada fábrica de pianos do mundo), os dois primeiros de sete lotes de discos já foram lançados. No total, serão 250 horas de música, um quarto das quais oferecidas pela primeira vez em CD.
Noventa minutos são inéditos, incluindo a gravação da "Rapsódia Húngara nş 10", de Liszt, por Nelson Freire (único brasileiro da série) e das "Três Peças Op. 11", de Schoenberg, por Mitsuko Uchida, encomendada para o projeto.
Seja por elegância ou precaução, a ausência de artigo no título do projeto foi um acerto. Os 72 são todos grandes, mas não são inquestionavelmente "os" grandes pianistas do século, e todo crítico há de reclamar de quem ficou de fora.
Para nós, brasileiros, parece tendencioso incluir André Watts ou André Previn, deixando Guiomar Novaes de fora. Os franceses podem lamentar a falta de Marguerite Long ou Marcelle Meyer; os italianos, de Aldo Ciccolini ou Dino Ciani, sem falar em Busoni.
A escolha conservadora do repertório decretou uma censura aos grandes pianistas da música contemporânea, como Roger Woodward e Ursula Oppens. Mas ninguém pode reclamar muito de uma coletânea tão extensa, variada e cheia de raridades e surpresas.
Nomes mitológicos, como os de Josef Hofmann (1876-1957), Ignaz Friedman (1882-1948) ou Leopold Godowsky (1870-1938), espectros fantásticos como Josef Lhévinne (1872-1944) ou Ignacy Paderewski (1860-1941) ressurgem aqui na companhia de Argerich, Haskil e Horowitz. Nenhum instrumento foi tão abençoado de intérpretes quanto o piano; e essas gravações só confirmam a realidade das fábulas, que é como cada geração minimiza a memória das outras.
Alfred Cortot (1877-1962) existiu: a partir de fevereiro, qualquer um poderá comprovar o fato, escutando a integral dos "Estudos", "Op. 10" e "Op. 25", de Chopin, ou a "Kreisleriana", de Schumann.
Edwin Fischer (1886-1960) não é só uma divindade particular de seu discípulo Alfred Brendel: veja-se o que fazia com Bach (lançamento em abril de 99). Já disponível nas lojas, o CD do duo Lyubov Bruk e Mark Taimanov é mais uma renovação do desconhecido: não só pela fluência amorosa do estilo, exuberante de energia e charme, mas também pela música de Anton Arensky (1861-1906), resgatada ao panteão das suítes para dois pianos de Rachmaninoff e dos concertos de Mozart e Poulenc.
Em ordem alfabética (de "Anda, Géza" a "Zimerman, Krystian"), ou cronológica (de Paderewski, nascido em 1860, a Evgeny Kissin, hoje com 27 anos), os discos podem ser colecionados um a um; e a aquisição anárquica também serve, para quem preza mais os discos do que a discoteca.
O repertório vai dos elisabetanos Byrd e Gibbons, transcendidos pela imaginação de Glenn Gould, até Prokofiev, Bartók e os pequenos grandes compositores do modernismo (Milhaud, Poulenc, Rorem). Fica claro que os discos foram concebidos para exibir os pianistas; mas a maioria vale pela música também, não só pelos músicos. Se é que há diferença: com pianistas dessa natureza, cada partitura é uma ocasião para algo que ultrapassa os dedos, ultrapassa as idéias, ultrapassa até pianistas e piano, embora não exista sem eles.
Tudo vale o piano, se a alma não é pequena. O conhecido vem se velar e se revelar de novo. Josef Lhévinne tocando o "Estudo Op. 25/6", de Chopin: como fica difícil escutar Pletnev depois (embora incluído também nos 72). O Bach de Rosalyn Tureck: merecedor dos elogios públicos de Glenn Gould. O Schumann de Godowsky: justifica o apelido do pianista -o "Buda"- sábio e humano em meio à tempestade.
E quem não se impressiona com Wilhelm Kempff, chegando agora, sete anos depois de sua morte, ao ponto mais alto da carreira? "Kempff é, para mim, o modelo absoluto... o nível mais alto que se pode conceber", comentou Alfred Brendel, que ajudou a editar os discos de Kempff, Cortot e Fischer. "A música parece tocada por um santo -coisa que ele certamente não era, do ponto de vista político" (revista "Diapason", set/98).
Paridades e disparidades entre vida e obra chamam a atenção para quem se dedicar à leitura das minibiografias que acompanham os encartes. A sucessão de enredos sugere uma outra forma, também, de escutar tanta música.
William Kapell, prodígio americano, morrendo aos 31 anos num desastre de avião. György Cziffra, ativista político na Hungria, fugindo a pé com a família, até Viena, depois da revolta de 1956. Shura Cherkassky, morando num quarto em Londres, estudando num piano de armário e memorizando horários de avião. "Dame" Myra Hess tocando em pleno bombardeio, durante a Segunda Guerra. Byron Janis, acometido de artrite, largando o piano para casar com a filha de Gary Cooper. Artur Rubinstein, sorvendo a vida até o último gole, um Picasso do piano. Robert Casadesus transportando sua academia de Fontainebleau para os EUA, em parceria de uma vida inteira com sua mulher Gaby.
Todas essas histórias, que ganham voz ao mesmo tempo em que desaparecem nas horas de música, fazem da coleção uma espécie de "Comédia Humana".
Escrita por 72 pianistas, a partir dos textos dos compositores, a série inteira tem a dimensão de um monumento: um memorial do século, tanto quanto do piano e dos pianistas. Não há mais Balzac possível, a essa altura, mas 250 horas de grandes pianistas é toda a tragédia e toda comédia que se quer levar de um século para outro, memória e lastro para o que vier.
²
Coleção: Great Pianists of the 20th Century Intérpretes: vários Lançamento: Philips (importado) Quanto: R$ 23 por CD, em média (são 200 CDs) Onde comprar/encomendar: www.amazon.com; www.towerrecords.com



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