|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Comilanças, bebedeiras e outros excessos
A comida tradicional das
festas de Natal não é arrebatadora: o peru assado é quase
sempre seco, e o presunto, por caramelizado que seja, continua
sendo um presunto. Apesar disso,
no dia seguinte, ressoa uma litania: comi demais, extrapolei, a
partir de amanhã meus nomes
são esteira e regime.
Alguns festejam duas vezes: na
véspera é o jantar da família e, no
dia de Natal, é o almoço na casa
dos sogros ou dos pais. A 12 horas
de distância, encaram os mesmos
pratos; a repetição deveria sugerir
moderação. Nada disso, os excessos se repetem.
Para quem sofre de distúrbios
alimentares, é um momento trágico. Uma bulimia que parecia
curada pode despertar na camaradagem da mesa: "Todos comiam, eu também comi até não
poder mais. Depois, fui para o banheiro e forcei o vômito. Voltei
para a mesa, comi de novo... fazia
anos que isso não me acontecia".
Às vezes, a mesa é puxada por
um irmão ou um primo comilões
que lideram o abarrotamento.
Outras vezes, é a solicitude de
uma mãe para quem o apetite dos
comensais é a prova certeira do
amor.
Mas os casos que me interessam
hoje são aqueles em que nenhum
comensal, quando senta na mesa,
quer comer demais. Ninguém é
um glutão, e nenhuma mãe abusiva enche os pratos. Apesar disso,
todos acabam amaldiçoando seus
próprios excessos e sonhando com
a mágica do bicarbonato.
Histórias parecidas acontecerão
de novo no fim do ano. Apesar de
a bebida ser eventualmente péssima, muitos beberão mais do que
queriam e começarão o ano praguejando contra a noite anterior.
Em suma, regularmente escuto
sujeitos que se perguntam por
quais forças misteriosas foram
possuídos naquela infausta mesa
em que ninguém queria comer e
beber tanto. A cada vez, lembro-me das experiências que David
Myers, um psicólogo social americano, realizou no final dos anos
70. Myers quis entender os mecanismos pelos quais pequenos grupos de pessoas chegam a decisões
e condutas comuns.
Ele descobriu o seguinte. Quando, num pequeno grupo, existem
opiniões diferentes, o grupo pode,
é claro, quebrar. Você quer comer
carne, eu sou vegetariano e Fulano está de jejum: desistiremos de
almoçar juntos, cada um volte
para sua casa. Mas, se o grupo
não quebrar, se conseguir estabelecer um projeto comum, é bem
provável que um acordo seja encontrado ao redor de uma posição MAIS extrema do que a posição de qualquer membro do grupo.
Ou seja, você quer comer uma
picanha inteira, eu quero comer
uma fatia transparente de lombinho, ele mal aguenta o cheiro da
comida, e acabaremos todos comendo um boi inteiro. A tendência é que a unanimidade se faça
graças a uma escolha radical que
nem existia antes de o grupo concordar.
Para quem acredita no poder
da razão discursiva para resolver
conflitos, as pesquisas de Myers
são uma pedra no sapato (ou no
estômago).
Elas se aplicam a casos menos
engraçados do que comilanças e
bebedeiras. Imagine (é só um
exemplo) três jovens que, de noite, passeiam pelas ruas de Brasília. Eles encontram um índio que
dorme debaixo de um abrigo de
ônibus. Um dos jovens acha que é
melhor deixar o homem tranquilo e seguir em frente, outro acharia graça em dar um susto no índio gritando no seu ouvido de repente e o terceiro gostaria de dar-lhe uma ducha com um balde de
água gelada. Seria razoável que
os três negociassem uma espécie
de média, ao redor da posição do
segundo, não é? Pois é, as experiências de Myers mostram que
eles tenderão a concordar em dar
um banho não de água gelada,
mas de gasolina, e em tocar fogo
no homem. Como é possível? Por
que o grupo não é um lugar de debate racional ou razoável?
Em qualquer grupo, grande ou
pequeno, a coesão e, portanto, a
sensação de pertencer ao conjunto são as coisas mais gratificantes
para os membros. No caso, uma
escolha extrema oferece uma
grande consistência de grupo. Encontraremos nossa unidade por
sermos os empanturrados, os
doentes de amanhã de manhã ou,
mais radicalmente, os cúmplices
de um assassinato.
Além disso, num grupo pequeno, a corrida para a liderança é,
por assim dizer, inflacionária.
Imaginemos "A", "B" e "C" querendo festejar. "A" propõe que se
coma peixe e carne; se "B" concordar, "C" não vai contentar-se com
a posição de terceiro aderente. Ele
proporá que se coma peixe, carne
e ovos fritos. "A", para manter a
liderança, aceitará com entusiasmo, mas agregará a salada de batatas. Como "B" resistiria à tentação de propor um antepasto? Não
é uma discussão: é um pôquer em
que todos seguem aumentando as
apostas até a catástrofe final, gastrodigestiva ou outra.
A idéia de que agiríamos como
sujeitos racionais está em baixa.
Em 2002, um psicólogo, Daniel
Kahneman, ganhou o Prêmio
Nobel de Economia por mostrar
que nosso comportamento econômico não é racional.
Também, fora as comilanças,
há suficientes mortos e feridos pelo mundo afora para lembrar que
os mecanismos de nossa vida de
grupo são imperiosos, exigentes e
pouco razoáveis.
Para o Ano Novo, talvez seja
prudente contar menos com a razão e mais com a boa vontade dos
indivíduos.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Literatura: Livro reforça empatia entre homem e animal Próximo Texto: Panorâmica - Música: Diana Ross é presa ao dirigir embriagada Índice
|