São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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LITERATURA

"Niki, a História de um Cão", de Tibor Déry, uma das obras mais populares da Hungria, é lançada no Brasil

Livro reforça empatia entre homem e animal

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Os efeitos saudáveis de um Nobel certeiro, o do romancista húngaro Imre Kertész, já começam a se fazer sentir até mesmo no Brasil com a publicação de "Niki, a História de um Cão", de seu conterrâneo Tibor Déry (1896-1977).
Nascido numa família da classe média judaica de Budapeste, o escritor, como tantos intelectuais judeus da época, aderiu ativamente ao espírito revolucionário que assumiria no país, após sua derrota desastrosa na Primeira Guerra, a forma da efêmera República Húngara dos Conselhos, uma experiência bolchevique que durou poucos meses e, esmagada por tropas romenas orientadas pela França, foi sucedida pela longa ditadura fascistizante do Almirante Horthy.
Fugindo do "terror branco", Déry -cujo primeiro conto aparecera, em 1917, na importante revista "Nyugat" (Ocidente)- exilou-se na Tchecoslováquia e depois na Áustria, não retornando antes dos anos 30, quando escreveu "A Sentença Inconclusa", romance publicado apenas em 1947, mas considerado um dos melhores retratos realistas da classe média húngara do entreguerras.
Sua simpatia inicial pelo socialismo se converteu rapidamente em desilusão quando se patenteou que o regime imposto pelas tropas do Exército Vermelho era uma tirania tão cruel e despótica quanto a anterior. Entre o fim dos anos 40 e meados da década seguinte, o país esteve sob o jugo da pior ditadura stalinista de todo o bloco soviético e foi essa pressão que resultou na insurreição popular de 1956, quando uma nação minúscula se opôs, semanas a fio, ao rolo compressor do Pacto de Varsóvia.
Um dos estopins da revolta foi a fermentação desencadeada nos meses anteriores por uma intelectualidade crítica que desafiou o poder. Uma vez que os soldados russos e seus aliados reimpuseram a paz dos cemitérios, centenas de milhares de pessoas se exilaram no Ocidente (entre elas, o tradutor do livro), os políticos e militares implicados foram executados e os escritores pagaram caro por sua desobediência. O prestígio internacional de Déry salvou-lhe o pescoço sem evitar, no entanto, que amargasse seis anos de prisão.
É esse o período coberto por sua breve obra-prima. A vida de um casal durante os "anos de cão", de 48 a 56, é acompanhada do ponto de vista de seu cachorro, Niki (1956), numa novela em que se exploram todas as irônicas possibilidades narrativas abertas pelos paralelos encontrados entre a existência canina e a humana.
Para os húngaros, um povo originalmente pastoril que se estabeleceu no extremo ocidental da estepe eurasiana, o cachorro ocupa um lugar de primeira importância, algo que se revela na profusão de provérbios associados a ele: "uivo de cão não chega aos céus"; "cachorro não vira salame"; "o cachorro late e o dinheiro fala"; "um é cão, o outro, cachorro" etc. Tal familiaridade intensifica magistralmente a empatia que o autor cria entre as experiências do animal e a das pessoas.
A partir dos anos 60, János Kádár, o novo ditador comunista, optou por uma política de pacificação e compromisso que admitia certo grau de dissidência intelectual. Um dos primeiros resultados dessa decisão foi justamente a publicação de "Niki", algo impensável antes da insurreição. Embora a novela, como se poderia esperar, não acarretasse o fim do regime, que só terminou quando ocorreram mudanças em seu centro, na Rússia, ela se tornou, desde então, uma das obras mais populares do país.


Niki - A História de um Cão
    
Autor: Tibor Déry
Tradutor: Gábor Aranyi
Editora: Veredas
Quanto: R$ 25 (128 págs.)



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