São Paulo, domingo, 02 de janeiro de 2005

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SÉRIES DE TV

"Angels in America" adapta obra-prima de Tony Kushner, abordando a era Reagan e o surgimento da Aids

Mike Nichols faz retrato de um tempo triste

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Desde que "Angels in America" estreou na Broadway, em 1993, falava-se de uma adaptação para o cinema deste texto de Tony Kushner, um marco do teatro americano contemporâneo.
Robert Altman e Neil LaBute chegaram a anunciar seus projetos, ambos abortados. De fato, nas condições atuais do cinema "mainstream" americano, altamente conservador, a produção de um texto complexo e longo sobre Aids, homossexualismo e política confirmou-se impossível.
Mas não na TV, hoje bem mais aberta. "Angels in America" transformou-se em uma premiada minissérie em dois capítulos produzida pela HBO, com direção de Mike Nichols e estrelada por Al Pacino, Emma Thompson e Meryl Streep -agora em DVD.
De certa forma, é uma peça altamente datada, mas aí que reside sua força. Kushner, que define seu texto como uma "fantasia gay sobre temas nacionais", retrata Nova York entre 1985 e 86 (na primeira parte) e 1987 e 1990 (na segunda). São tempos sombrios, marcados pelo conservadorismo da era Reagan e pela tristeza da descoberta da "peste gay" (a Aids, envolvida em desinformação).
Logo nos primeiros minutos, Prior Walter (Justin Kirk) conta a seu companheiro Louis (Ben Shankman) que está com Aids, deslanchando em Louis um processo de repulsa e culpa que vai levá-lo a abandonar o companheiro no pior momento da doença.
Paralelamente, conhecemos o mórmon Joe Pitt (Patrick Wilson), gay enrustido, e sua mulher, Harper (Mary Louise Parker). Pitt é assistente de Roy Cohn (Al Pacino, excepcional), advogado republicano ultraconservador e corrupto que também esconde sua condição homossexual. Na medida em que Prior e Cohn adoecem, delírios se misturam à realidade: Prior vê ancestrais que foram vítimas da peste e um anjo; e Cohn conversa com Ethel Rosenberg, executada na cadeira elétrica graças à sua atuação como promotor.
"Angels in America" não soa extremamente datado pelo seu recorte histórico, mas, sim, por sua visão política. Se a primeira parte é um painel devastador e emocionante de uma época, na segunda parte Kushner leva às últimas conseqüências idéias políticas questionáveis. Não há um diálogo que não termine com a sugestão de que os judeus odeiam os negros e vice-versa, sem apontar a possibilidade disso ser superado.
Mais complicada ainda é a idéia de que a Aids funcionou como uma "revelação" da verdade, abolindo a hipocrisia dos "gays" conservadores (que, aliás, são devidamente punidos, em um final que se revela altamente moralista).
Mesmo desfilando julgamentos simplistas, a série guarda imensa força como retrato de um tempo triste. Seus momentos mais impressionantes mostram a solidão de uma doença carregada de estigma e a tristeza da opressão política que tenta represar o desejo humano. Não é pouco.


Angels in America
   
Direção: Mike Nichols
Distribuidora: Warner, R$ 40, em média



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