São Paulo, domingo, 02 de janeiro de 2005

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CINEMA

Fragmento de filme mais antigo no Arquivo Nacional, no Rio, foi prova apresentada por pernambucano em 1897

Brasileiro pleiteia a invenção do cinema

ROBERTA NOVIS
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Dois anos após a primeira projeção dos irmãos Lumière, um brasileiro quis convencer o mundo de que era o inventor do cinema. O pernambucano José Roberto da Cunha Sales (1840-1903) patenteou em 1897 como sua a invenção de projetar imagens em movimento, apresentando para o registro seqüência de cenas do mar batendo num píer que não tinha nem um segundo de duração.
O material, que hoje é o mais antigo fragmento de filme na história do Brasil, é um dos mais de 70 mil títulos reunidos no acervo do Arquivo Nacional, no Rio, embrião de uma futura sala que a instituição pretende inaugurar.
O Arquivo Nacional já organiza há três anos o Festival Internacional de Cinema de Arquivo, o Recine, realizado em setembro, mas quer exibir periodicamente os filmes de seu acervo.
Sales se intitulava médico, advogado, poeta, empresário de cinema, comerciante, ilusionista, químico industrial e curandeiro. Foi juiz, exonerado por corrupção, na cidade de Areal, a 90 km do Rio, e chegou até a candidatar-se a deputado em Recife.
Cunha Sales é tido por estudiosos como figura fascinante e folclórica. Um típico charlatão, inteligente e criativo, que queria trabalhar pouco e ganhar muito dinheiro no final do século 19.
Foi um dos responsáveis pela inauguração da primeira sala de cinema do Brasil, dividindo o título com o empresário italiano Pascoal Segretto. Mas, mal o cinema fora inventado, em 1895, Cunha Sales pediu sua patente.
Para pleitear o registro, ele apresentou 11 fotogramas de origem desconhecida ao Arquivo Nacional, que até o início do século 20 era vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios do Interior, responsável pelo registro de marcas e patentes.
O cineasta Jurandir Noronha, homenageado na última edição do Recine, ofereceu equipamentos antigos para montar o centro de memórias do cinema brasileiro. "Os fotogramas são os mais antigos fragmentos conhecidos do Brasil. Cunha Sales os chamava de fotografias vivas. Ele foi o brasileiro que mais apresentou pedido de patentes. Ao todo, foram 26 processos. É uma das personalidades mais curiosas da vida urbana na belle époque, quando os centros urbanos viviam a agitação de novas tecnologias e grande atrativos culturais", diz Clovis Molinari Júnior, coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos do Arquivo Nacional.
O local das imagens dos fotogramas ainda é uma incógnita para os pesquisadores. "Cunha Sales era muito esperto. Não podemos identificar o local das imagens, mas, pelas perfurações da película, é um pedaço de filme da Inglaterra ou EUA. Não foi filmado por ele", diz o cineasta e pesquisador Máximo Barro, que escreveu o livro "Na Trilha dos Ambulantes" (ed. Maturidade), que tem capítulo sobre o pernambucano.

Jogos de azar
Cunha Sales ficou famoso como grande explorador dos jogos de azar. Ele criou um museu de cera chamado Pantheon Ceroplástico, com personalidades brasileiras como Tiradentes e Pedro Álvares Cabral, onde sorteava datas de celebração cívica e premiava os visitantes que tinham o mesmo número no ingresso. A polícia prendeu Cunha Sales e invadiu o museu. O caso virou até crônica de Machado de Assis.
"Cunha Sales, inventor do Pantheon Ceroplástico, teve certamente a idéia de só gastar cera com bons defuntos, mas acaba de aprender que podia gastar com piores. Não falo dos propriamente mortos, mas dos vivos, a quem quis ensinar história por meio de visita de pessoas históricas. Não podendo fazê-lo de graça, estabeleceu uma entrada, creio que módica; é o que faz qualquer escola de primeiras letras. As mesmas faculdades libérrimas aceitam custo da matrícula", escreveu Machado.
"A diferença é que alguns dos espectadores do ceroplástico recebem prêmio. Creio que foi esta circunstância que lembrou ao governo mandar anular a patente que deu ao inventor", conclui.
Entre seus pedidos de patentes mais inusitados, estão a invenção da fórmula do Sabão Mágico, contra espinhas, sardas e manchas, que ele dizia ser "a última palavra do século 19 sobre química industrial"; um Cristal-Esmalte para preservar oxidação de objetos de ferro; um carro destinado à publicidade de anúncios, denominado Imprensa Ambulante; e Lavagem Americana, que lavava roupa sem sabão. Inventou também uma água estomacal denominada Aperitivo Americano contra moléstias do estômago.
"Cunha Sales tinha muita imaginação. Era um criador de espírito irrequieto", diz Molinari.
Mas, segundo Máximo Barro, Cunha Sales enganou muitas pessoas humildes e doentes e inclusive teve sua patente de inventor cassada pelo governo federal. "Ele era mau-caráter em muitas coisas. Foi preso e processado diversas vezes. Sales anunciava que podia curar doenças apenas colocando as mãos nas cabeças dos enfermos e dizia que podia ensinar a ler e escrever baseado nas sete notas musicais", afirmou.
Cunha Sales morreu provavelmente de hanseníase, adquirida numa dessas sessões de cura, em Niterói, onde está enterrado. Os pesquisadores nunca tiveram acesso à certidão de óbito, mas não descartam a possibilidade de ele ter morrido louco.


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