São Paulo, sábado, 02 de janeiro de 2010

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Crítica/"A Vingança de Hileia"

Ensaios examinam Amazônia de Euclides

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Augusto dos Anjos define o ser humano como "homo infimus, carne sem luz, criatura cega, realidade geográfica infeliz". Se é verdade que todos os seres são homo infimus, Francisco Foot Hardman nos mostra, no livro "A Vingança de Hileia" e a partir do olhar de Euclides da Cunha, que esta qualificação é ainda mais verdadeira para o homem amazônico do início do século 20. Neste volume de ensaios, o autor, experiente no tema euclidiano, amazônico, como também em uma fase esquecida da história literária brasileira (o assim chamado "pré-modernismo"), milita bravamente no sentido da recuperação de uma geografia física e literária da Amazônia.
A Hileia, ou a floresta amazônica, como a denominou Alexandre Von Humboldt, era e ainda é um continente marginal dentro de um país, "a fronteira do que não foi; a fronteira do que é, em sendo, um incerto vir-a-ser". E é utilizando uma linguagem que em tudo embute e incorpora esse incerto vir-a-ser -em sua poesia, utopia e vertigem- que Foot Hardman nos apresenta a floresta, o seringueiro e o livro inacabado de Euclides, "Um Paraíso Perdido", que lida justamente com este tema. Seria seu "segundo livro vingador", em seguida a "Os Sertões", pois representaria a vingança do caboclo e da língua brasileira ao esquecimento e à exploração extrativista desumana na floresta.
Mas quem se vingou foi a Hileia: tanto dos trabalhadores, seres ínfimos e miseráveis, quanto do próprio autor, que, diante da natureza vertiginosa, infinitamente grande e infinitesimalmente pequena, não pôde manter mais nenhum tipo de otimismo ou fé no progresso brasileiro.
Embora os ensaios de Euclides já tenham sido publicados em forma de livro e com o mesmo título, o autor não finalizou a obra, acachapado que estava pela melancolia, pela injustiça, pela natureza e por seus próprios dramas pessoais e profissionais. Diante do caucheiro -sertanista explorador da borracha-, o desbravador bandeirante soa até ingênuo: "O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico. Foi o super-homem do deserto. O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante, na sua galanteria sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É o homúnculo da civilização".
É esta situação absurda, sem lógica, que impede Euclides de escrever sua obra e que leva Foot Hardman ao estabelecimento de três imagens-faróis a compor a Amazônia e a obra inacabada de Euclides: a "miniatura trágica do caos", o "labirinto moderno da solidão" e o "Judas ou judeu errante", este último revelado por Euclides no ritual entre trágico e poético, praticado pelos ribeirinhos, de lançar espantalhos ao rio no Sábado de Aleluia, numa pobre vingança de si mesmos, ao malhar um ser ainda mais desvitalizado do que eles próprios.
Euclides e Foot Hardman parecem associar-se numa visão e até numa linguagem utópica e assumidamente neorromântica do Brasil e do socialismo, o que só faz bem à compreensão do autor em estudo e à leitura dos ensaios. Embora o texto às vezes esbarre em barroquismos, tudo se compõe coerentemente com a proposta teórica dos ensaios, que, além de Euclides, ainda abordam Augusto dos Anjos, Sousandrade, Stefan Zweig e Raul Pompeia. Não se trata de livro de leitura fácil. Mas isso não é nem de longe um defeito. Seriam absurdos Amazônia e Euclides da Cunha trazidos para o plano palatável. Algumas coisas (geralmente as melhores) devem ser mastigadas muito lentamente para serem devidamente apreciadas.


A VINGANÇA DE HILEIA

Autor: Francisco Foot Hardman
Editora: Unesp
Quanto: R$ 54 (375 págs.)
Avaliação: ótimo


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