|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"Três Tristes Tigres"
Segunda tradução reaviva polifonia de Cabrera Infante
Em seu metarromance, agora relançado, cubano inventa música por escrito
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A cada dia estou mais
convencido de que
toda ideologia é
reacionária. Para mim, o comunismo não é mais que o fascismo do pobre" -a opinião provocativa, enunciada já em 1969,
não fez do cubano Guillermo
Cabrera Infante (1929-2005),
como não fizera de Borges, um
autor simpático à esquerda.
O desgaste da mitologia revolucionária e da imagem de Fidel Castro ajuda a entender por
que esta segunda tradução brasileira de "Três Tristes Tigres"
(1967) esteja sendo tão unanimemente aclamada, embora
seja justo lembrar aqui, também, a tradução pioneira de
Stella Leonardos, saída em
1980 pela editora Global. Nada
mal: duas traduções para um
romance que se pensa como intraduzível!
Haroldo de Campos soube
dar-lhe a devida importância,
embora insistisse em aliá-lo ao
"neobarroco", o que não deixa
de desfocar essa grande prosa
experimental, de extração joyciana, como tantos outros livros iniciados/produzidos nos
anos 60, como "Ada ou Ardor",
de Nabokov; "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar; o próprio
"Galáxias", de Haroldo de Campos, e até "Catatau", de Paulo
Leminski. Nenhum tem a grandeza de execução de "TTT".
Cabrera Infante o concebeu
como um metarromance, em
que se joga a própria possibilidade de criação ficcional. São
capítulos escritos em primeira
pessoa, por diferentes personagens ou vozes intercaladas em
intervalos regulares, numa polifonia de gírias, jargões, sotaques, línguas. Trata-se de inventar uma forma de música
por escrito, o que imediatamente acusa o paradoxo de sua
inscrição silenciosa.
Por isso mesmo, no núcleo
(não evidente) do romance, está a personagem de Bustrófedon, cujo nome já indica um
modo de escrever sem necessariamente fazer sentido. Mais
radicalmente, nomeia um escritor pleno, com perfeito domínio dos instrumentos do
idioma, que simplesmente não
escreve, como o Bartleby, de
Melville. O seu melhor legado
são memórias cuidadosamente
guardadas em páginas em
branco sob o peso de um penico, ou transcrições de gravações de pastiches de autores cubanos (José Martí, Lezama Lima, Alejo Carpentier etc.), que
acentuam histrionicamente alguns de seus sestros estilísticos.
Bustrofédon lê dicionários.
Joga com as palavras com liberdade e tirania, como se fossem
dele, à maneira do Humpty-Dumpty, de Lewis Carroll, de
modo a fazê-las resistir à sua fixação nos sentidos correntes.
Mas não está apenas nessa personagem o projeto de uma literatura que é potência anterior à
escritura, antes de sua transformação em objeto. No fotógrafo Códac há a nostalgia de
uma paisagem anterior à sua fixação nas condições técnicas
do polaróide. O escritor Silvestre quer recuperar pela memória o que Bustrófedon não logrou pelo dicionário. A própria
área boêmia de La Rampa, onde se cruzam as várias vozes do
romance, é em si mesma tentativa de reconstrução imaginária de uma Cuba não só anterior a Fidel, mas a Batista, ao
Malecón, a Colombo e à terra
que a distingue do mar.
Trata-se, pois, de inventar o
que não está, nem pode estar
em lugar nenhum: aquilo que é
a literatura, quando não se conforma em ser apenas literatura.
Assim, se há literatura, se há até
duas traduções!, o tema definitivo de "TTT" acaba sendo menos a ficção que as condições de
sua traição.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
TRÊS TRISTES TIGRES
Autor: Guillermo Cabrera Infante
Tradução: Luis Carlos Cabral
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 69 (518 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Livro analisa legado do Rex, coletivo de Wesley Duke Lee Próximo Texto: Crítica/"A Vingança de Hileia": Ensaios examinam Amazônia de Euclides Índice
|