São Paulo, sábado, 02 de janeiro de 2010

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Crítica/"Três Tristes Tigres"

Segunda tradução reaviva polifonia de Cabrera Infante

Em seu metarromance, agora relançado, cubano inventa música por escrito

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A cada dia estou mais convencido de que toda ideologia é reacionária. Para mim, o comunismo não é mais que o fascismo do pobre" -a opinião provocativa, enunciada já em 1969, não fez do cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), como não fizera de Borges, um autor simpático à esquerda.
O desgaste da mitologia revolucionária e da imagem de Fidel Castro ajuda a entender por que esta segunda tradução brasileira de "Três Tristes Tigres" (1967) esteja sendo tão unanimemente aclamada, embora seja justo lembrar aqui, também, a tradução pioneira de Stella Leonardos, saída em 1980 pela editora Global. Nada mal: duas traduções para um romance que se pensa como intraduzível!
Haroldo de Campos soube dar-lhe a devida importância, embora insistisse em aliá-lo ao "neobarroco", o que não deixa de desfocar essa grande prosa experimental, de extração joyciana, como tantos outros livros iniciados/produzidos nos anos 60, como "Ada ou Ardor", de Nabokov; "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar; o próprio "Galáxias", de Haroldo de Campos, e até "Catatau", de Paulo Leminski. Nenhum tem a grandeza de execução de "TTT".
Cabrera Infante o concebeu como um metarromance, em que se joga a própria possibilidade de criação ficcional. São capítulos escritos em primeira pessoa, por diferentes personagens ou vozes intercaladas em intervalos regulares, numa polifonia de gírias, jargões, sotaques, línguas. Trata-se de inventar uma forma de música por escrito, o que imediatamente acusa o paradoxo de sua inscrição silenciosa.
Por isso mesmo, no núcleo (não evidente) do romance, está a personagem de Bustrófedon, cujo nome já indica um modo de escrever sem necessariamente fazer sentido. Mais radicalmente, nomeia um escritor pleno, com perfeito domínio dos instrumentos do idioma, que simplesmente não escreve, como o Bartleby, de Melville. O seu melhor legado são memórias cuidadosamente guardadas em páginas em branco sob o peso de um penico, ou transcrições de gravações de pastiches de autores cubanos (José Martí, Lezama Lima, Alejo Carpentier etc.), que acentuam histrionicamente alguns de seus sestros estilísticos. Bustrofédon lê dicionários.
Joga com as palavras com liberdade e tirania, como se fossem dele, à maneira do Humpty-Dumpty, de Lewis Carroll, de modo a fazê-las resistir à sua fixação nos sentidos correntes. Mas não está apenas nessa personagem o projeto de uma literatura que é potência anterior à escritura, antes de sua transformação em objeto. No fotógrafo Códac há a nostalgia de uma paisagem anterior à sua fixação nas condições técnicas do polaróide. O escritor Silvestre quer recuperar pela memória o que Bustrófedon não logrou pelo dicionário. A própria área boêmia de La Rampa, onde se cruzam as várias vozes do romance, é em si mesma tentativa de reconstrução imaginária de uma Cuba não só anterior a Fidel, mas a Batista, ao Malecón, a Colombo e à terra que a distingue do mar.
Trata-se, pois, de inventar o que não está, nem pode estar em lugar nenhum: aquilo que é a literatura, quando não se conforma em ser apenas literatura. Assim, se há literatura, se há até duas traduções!, o tema definitivo de "TTT" acaba sendo menos a ficção que as condições de sua traição.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


TRÊS TRISTES TIGRES

Autor: Guillermo Cabrera Infante
Tradução: Luis Carlos Cabral
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 69 (518 págs.)
Avaliação: ótimo


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