São Paulo, sábado, 2 de janeiro de 1999

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LIVRO - LANÇAMENTOS
Vidal leva EUA ao "Além da Imaginação"


MARCELO PEN
especial para a Folha

Gore Vidal teria enlouquecido? Perdido a mão ao perpetrar seu 24º romance? Afinal, precisamos passar das primeiras 30 páginas, no mínimo, para perceber que não se trata de uma ficção científica dirigida ao público juvenil. Mas, assim como "As Viagens de Gulliver" ou "Alice no País das Maravilhas", "Fundação Smithsonian" é bem mais do que mera fantasia.
Se bem que é difícil acreditar nisso, no início. Em 1939, o garoto T. é misteriosamente convocado pela fundação do título. Há de fato uma instituição como essa em Wa- shington, fundada com dinheiro do químico inglês James Smithson. A do livro, porém, é diferente.
Uma espécie de Abraham Lincoln desmemoriado, perito em cerâmica, faz as vezes de administrador. Os manequins de gesso das exposições de História Americana ganham vida após a saída do público. Uma engenhoca termodinâmica mostra o passado, como numa televisão. O próprio dr. Smithson pode ser uma espécie de boneco-mor que, oculto no porão de sua fundação fantasma, joga com a vida de todos.
T. escapa por pouco de ser devorado pelos nativos da Mostra dos Primeiros Índios. É salvo por uma "escrava branca" que depois revela ser esposa do 22º presidente americano, a primeira-dama Frankie Cleveland, com quem perde a virgindade. Voa com Charles Lindebergh no "The Spirit of St. Louis". Ajuda os EUA a desenvolverem o projeto da bomba atômica, elaborando uma fórmula que limita a reação em cadeia da fissão nuclear.
Mas, quando encontra uma cópia sua, vestida de fuzileiro, com um buraco do tamanho de uma bola de basquete nas costas, numa mostra possivelmente dedicada à futura Segunda Guerra Mundial, T. percebe que precisa fazer algo. E decide mudar a história.
Começa aqui a melhor parte do livro. O truque é deter a candidatura de Woodrow Wilson, evitando a Primeira Guerra e, em consequência, a Segunda. A partir de mirabolantes equações de espaço-tempo, da física quântica retirada da revista "Popular Mechanics" e de US$ 100 mil surrupiados do Briggs Bank, T. atinge seu intento. Daí em diante, como Marx teria confirmado, a história se repete como farsa.
Impede-se a Primeira Guerra, mas não a Segunda, pois T. esquecera os japoneses. Trotski é agora o presidente da União Soviética; Hitler, ou melhor, Shekel Grubert, um pedante arquiteto. Diante do conflito, há uma mobilização dos ex-presidentes mortos e as primeiras-damas. Franklin D. Roosevelt, não mais numa cadeira de rodas, é convidado para uma sessão para lá de espírita, na fundação.
A pena de Vidal se afia no retrato desse respeitável bando. O presidente James Buchanan, vestido de mulher, prefere ser chamado de sra. Buchanan. George Washington acusa os EUA de se transformarem em potência colonialista. "Nós mesmos nos tornamos os conquistadores", dispara. Roosevelt reclama da reunião: "Alguém me drogou para que eu tivesse esse horrível pesadelo?".
Por trás do humor e das teses científicas estapafúrdias, esconde-se uma visão cáustica da história americana, na qual jovens servem como bucha de canhão para que os EUA cumpram o duvidoso papel de "árbitro da guerra e da paz em todos os lugares do mundo". T. pode ser a inicial de Trimble.
Jimmie Trimble, paixão adolescente de Vidal, estudou com ele na St. Albans School (a mesma de T.) e morreu na batalha de Iwo Jima, na Segunda Guerra Mundial. Vidal sugere, em "Palimpsesto", que gostaria de trazê-lo à vida. "Fundação Smithsonian" é sua chance de exercer seu lado Frankenstein.
Com toques de "Além da Imaginação" e "Túnel do Tempo", "Fundação" é bem mais leve do que os romances históricos do autor. A ênfase agora está no simulacro. Como indagou Vidal numa entrevista à revista "Wired", "Disney pode nos salvar?".
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Livro: Fundação Smithsonian
Autor: Gore Vidal
Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 25 (272 págs.)





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