São Paulo, sexta-feira, 02 de fevereiro de 2001

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Um dos grandes pensadores brasileiros lança livro com interpretação sobre o país

O Brasil (segundo Milton Santos)




Em "O Brasil", geógrafo baiano faz o primeiro grande retrato nacional posterior à globalização


Jarbas Oliveira/Folha Imagem
O geógrafo baiano Milto Santos, 74, da Usp, que está lançando "O Barsil: Território e Sociedade no Início do Século 21"


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil globalizado está ganhando seu primeiro retrato de corpo inteiro. O responsável pela fotografia fez bem mais do que um Oiapoque ao Chuí intelectual antes de bater essa chapa.
Nascido na cidadezinha baiana de Brotas de Macaúbas, Milton Santos começou a lecionar aos 15 e já espalhou suas idéias tanto em salas da Universidade de Sorbonne, em Paris, quanto da Universidade Dar Assalaam, na Tanzânia.
Em meio a essas e outras expedições, Santos atingiu o Everest de sua disciplina. Ganhou em 1995 o Prêmio Vautrin-Lud, considerado o Nobel da geografia.
Aos 74, ele chega agora ao provável pico de uma carreira pontuada por "uns 50 livros". O professor emérito da Universidade de São Paulo, o primeiro negro a conseguir esse título, está lançando pela editora Record o livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século 21".
No trabalho assinado junto com a pesquisadora argentina María Laura Silveira, o geógrafo segue a picada aberta por um seleto grupo de intelectuais. Assim como os "bandeirantes" Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e Caio Prado Júnior, ele fez a sua interpretação do Brasil, a primeira a pesar os efeitos da globalização.
"Esse livro reúne todo o estudo de geografia que venho fazendo e tenta aplicá-lo ao Brasil. É o resultado de pelo menos 25 anos de elaborações teóricas", explica à Folha o geógrafo.
Para "fazer o território falar pela nação", ele mergulhou em um trabalho de equipe. Apoiado por 20 pesquisadores, fez os mais diversos possíveis levantamentos de dados sobre como o brasileiro trabalha, se locomove, gasta, poupa, planta, colhe -assim vai.
O resultado das pesquisas "não está em computador não", diz orgulhoso o crítico ácido da globalização, que garante que nunca vai usar a Internet ("pressa para quê?"). Está tudo armazenado em dezenas de caixas de papelão com etiquetas como "agricultura", "telecomunicações" e "educação".
Foi em uma sala repleta delas, escondida em "uma catacumba" do prédio de geografia da Universidade de São Paulo, que o pensador recebeu a Folha para mostrar flashes desse seu retrato do Brasil.

Folha - No início de "O Brasil", o sr. escreve que Darcy Ribeiro interpretou o país a partir de seu povo, Florestan Fernandes, a partir da cultura, e que Celso Furtado buscou um retrato com uma matriz econômica. Gostaria que o sr. falasse sobre a moldura que o sr. usou para seu retrato do Brasil.
Milton Santos -
Interpretei o Brasil a partir do seu território. Ele é a personagem central dessa leitura. Quero mostrar que o território permite fazer falar a nação.
Um intelectual com ambição globalizante pretende que seu discurso seja representativo da realidade. A pretensão é igual à de Sérgio Buarque de Hollanda e de Celso Furtado. A diferença é que o resultado é menor. Mas assim como acontece com Celso, Buarque ou Florestan, quero que um sujeito que leia essa obra no Japão ou na Cochinchina entenda o Brasil.

Folha - Como o sr. definiria o conceito de território de "O Brasil"?
Santos -
No começo da história, havia a natureza. Vem o homem, se instala e começa a agregar novas coisas. Ele produz o território, dessa forma. Pode-se definir o território a partir do Estado, como na ciência política, ou pelos acidentes geográficos, como fazia outrora a geografia. Aqui na USP trabalhamos com a idéia de que o território é a construção da base material sobre a qual a sociedade produz sua própria história.

Folha - Quais os maiores desafios em discutir as questões territoriais em um momento em que a globalização torna os limites geográficos cada vez mais permeáveis?
Santos -
Um dos grandes desafios é da própria tradição da geografia. Durante sua vida, ela trata o território como um quadro negro sobre o qual a sociedade reescreve sua história. A ambição desse trabalho é negar essa visão do território. Ele também é dinâmico, vivo. A sociedade incide sobre o território e esse, na sociedade.
Com relação à pergunta, podemos falar daquilo que sociólogos chamam de desterritorialização, que viria da globalização. É o contrário. Nunca o território foi tão importante para a economia, para a sociedade e até para a cultura.

Folha - Qual momento específico da ocupação do território brasileiro acentuou de modo mais relevante as desigualdades sociais?
Santos -
A globalização. Ela representa mudanças brutais de valores. Os processos de valorização e desvalorização eram relativamente lentos. Agora há um processo de mudança de valores que não permite que os atores da vida social se reorganizem. Até a classe média, que parecia incólume, está aí ferida de morte.

Folha - Em "O Brasil" o sr. diz que a globalização agrava as diferenças regionais brasileiras. Até que ponto ela também integra?
Santos -
Ela unifica, não integra. Há uma vontade de homogeneização muito forte. Unifica em benefício de um pequeno número de atores. A integração é mais possível do que era antes. As novas tecnologias são uma formidável promessa. A globalização é uma promessa realizável e a integração será realizada.

Folha - Que mudanças mais radicais os avanços tecnológicos causam do ponto de vista geográfico?
Santos -
A mais radical é a tecnização da natureza. A substituição cada vez maior de uma ordem natural para uma ordem técnica, com todos os seus constrangimentos, seu discurso, sua sedução. É uma produção ao mesmo tempo do real e do mitológico.
Ao longo dos séculos, as mitologias eram produzidas pelos povos. Hoje não. Três ou quatro marqueteiros se juntam, produzem uma mitologia e vendem. A cidade, por exemplo, é tida por aqui como um lugar miserável.

Folha - E o que o sr. acha disso?
Santos -
As cidades não são nada disso. A cidade é o único lugar em que se pode contemplar o mundo com a esperança de produzir um futuro. Mas se criou toda uma liturgia anticidade. A cidade, porém, acaba mostrando que não existe outro caminho senão o socialismo. Para evitar que as pessoas acreditem nisso, há todo um foguetório ideológico para dizer que a cidade é uma droga. Imagine ir morar num campo. Só um louco quer morar em uma cidadezinha do interior.

Folha - Qual opinião exposta em "O Brasil" o sr. acredita que vai causar mais polêmica?
Santos -
Gostaria que fosse a ingovernabilidade. O modo como o território é usado aponta a ingovernabilidade da nação, dos Estados e das cidades. Existe um despreparo político e intelectual para enfrentar contradições.

Folha - Quais as soluções para essa ingovernabilidade?
Santos -
Creio que é preciso ampliar a produção do discurso. Depois deve se reequacionar as relações sociais no território.

Folha - O sr. diz: "A territorialidade humana pressupõe a preocupação com o destino". Qual deve ser o nosso destino?
Santos -
Você está me lançando a presidente da República (risos)? Creio que o que está acontecendo já é a produção de um outro tipo de massa, sobretudo na cidade. Por aí a coisa vai. Contatar essa busca de sentido das massas é o caminho. Quem não for um bom rapper ou algo assim vai ficar na rabeira. A população quer novos intérpretes para essa questão.

Folha - E por que as interpretações amplas sobre o país, que foram relativamente comuns até os anos 50, entraram em desuso?
Santos -
Acredito que a culpa é da universidade. Tanto ela quanto as instituições que financiam pesquisas querem respostas rápidas, trabalhos de curtos prazo.


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