São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2002

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RESENHA DA SEMANA

Desforra

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O universo de Márcia Denser está em algum ponto entre o de Walter Hugo Khouri e o de Caio Fernando Abreu. Sumida do mundo literário desde o final dos anos 80, a escritora reapareceu com a feliz inclusão de dois de seus contos mais fortes e interessantes na antologia "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", organizada por Ítalo Moriconi, que também assina o prefácio do novo livro da autora, "Toda Prosa", reunindo duas novelas e sete contos inéditos e dispersos.
A ambivalência perturbadora da prosa de Márcia Denser já começa pelo título dessa coletânea. Na melhor das hipóteses, "Toda Prosa" pode ser uma formulação irônica e divertida, a debochar dos cânones literários e da cultura oficial -no caso de afirmar que o pequeno volume contém toda a produção literária em prosa da escritora, tratada como um clássico da literatura.
Na pior das hipóteses, o título comporta um sentido inverso, um tanto ingênuo e tolo, que diria respeito a um suposto sentimento de orgulho da escritora diante da própria obra. Tudo depende dos olhos do leitor.
Muito dessa dualidade vem da tensão que os contos produzem ao confundir autora e obra. "Nas narrativas de Márcia Denser, a erótica da letra é o suplemento da vivência de um corpo em disponibilidade (...), o sentido único do exercício incansável da libidinagem é a meta de ser transposta para a prática textual. A alegria do gozo é buscada para possibilitar a alegria da criação poética", escreve Moriconi no prefácio do livro.
Ou seja, a autora vive para escrever. Mas, a julgar pelos seus textos, não há propriamente gozo, ou pelo menos não há "alegria do gozo" na experiência real. Há, ao contrário, frustração e desilusão diante do real, e a escrita vem, a posteriori, como um tipo muito particular e inventivo de vingança pelo relato. O gozo está na fantasia e na transfiguração da realidade pela escrita.
Nos seus melhores momentos, Márcia Denser se serve da narradora como alter ego. A personagem Diana Marini, uma Diana caçadora de experiências sexuais e amorosas pela noite paulistana, faz a transmutação da desilusão real em mitologia pessoal, experiência literária.
A autora vê aquilo que a cerca pelos olhos idiossincráticos e deformadores da sua narradora. A ressaca, o sexo casual, a solidão e os desencontros amorosos voltam como uma desforra literária, como uma forma de desacatar a realidade.
É quando ela fala dos homens, que em parte representam a incompreensão e a perplexidade da autora/narradora diante da imponderabilidade e da intangibilidade do real, de forma especialmente bem-sucedida nos contos "Memorial de Álvaro Gardel", "Cometa Austin" e também na novela "Exercícios para o Pecado".
A vítima se transfigura numa mulher que ainda sofre os golpes da experiência, mas agora já pode revidar, falando como os detetives existencialistas dos romances B americanos, como se tivesse se inspirado em traduções de literatura barata antes de abrir a boca: "Fitou-me com aqueles olhos maltrapilhos que me apertavam a garganta como garras pelo lado de dentro e era a piedade, eu sabia, a maldita piedade, o remorso de não poder mais voltar à boca aquela pergunta idiota..." ou "...o homem necessita especificamente dessa espécie de liberdade cuja dimensão é o raio da corda que a qualquer instante pode ser puxada e por isso é tão preciosa".
Márcia Denser/Diana Marini oscila entre a filosofia de botequim e uma espécie de rococó erótico: "Teus olhos eram seteiras onde arqueiros sonâmbulos espreitavam o fogo de batalhas perdidas há séculos. (...) No escuro teus lábios tatearam o caminho do meu rosto até o local exato de um beijo amargo". E é nessa combinação estranha e kitsch que está parte da sua originalidade, em algum lugar indefinido entre Walter Hugo Khouri e Caio Fernando Abreu.
Como no título, tudo depende dos olhos do leitor, à condição de que seja mantida a ambiguidade e a ironia. A autora, por exemplo, não colabora em nada com o leitor inteligente quando, descolando-se da ambivalência de sua narradora e de sua ficção, toma a palavra na apresentação do livro, mostrando-se decidida a afastar qualquer dúvida sobre si mesma: "Atingida a maturidade literária, me confesso uma escritora cult de linhagem clariceana, cortazariana, faulkneriana e por aí vai". Não é a melhor parte da obra.


Toda Prosa
   
Autora: Márcia Denser
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 25 (160 págs.)



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