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RESENHA DA SEMANA
Desforra
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O universo de Márcia
Denser está em algum
ponto entre o de Walter Hugo
Khouri e o de Caio Fernando
Abreu. Sumida do mundo literário desde o final dos anos 80, a
escritora reapareceu com a feliz
inclusão de dois de seus contos
mais fortes e interessantes na
antologia "Os Cem Melhores
Contos Brasileiros do Século",
organizada por Ítalo Moriconi,
que também assina o prefácio
do novo livro da autora, "Toda
Prosa", reunindo duas novelas e
sete contos inéditos e dispersos.
A ambivalência perturbadora
da prosa de Márcia Denser já começa pelo título dessa coletânea.
Na melhor das hipóteses, "Toda
Prosa" pode ser uma formulação irônica e divertida, a debochar dos cânones literários e da
cultura oficial -no caso de afirmar que o pequeno volume contém toda a produção literária
em prosa da escritora, tratada
como um clássico da literatura.
Na pior das hipóteses, o título
comporta um sentido inverso,
um tanto ingênuo e tolo, que diria respeito a um suposto sentimento de orgulho da escritora
diante da própria obra. Tudo
depende dos olhos do leitor.
Muito dessa dualidade vem da
tensão que os contos produzem
ao confundir autora e obra.
"Nas narrativas de Márcia Denser, a erótica da letra é o suplemento da vivência de um corpo
em disponibilidade (...), o sentido único do exercício incansável
da libidinagem é a meta de ser
transposta para a prática textual.
A alegria do gozo é buscada para
possibilitar a alegria da criação
poética", escreve Moriconi no
prefácio do livro.
Ou seja, a autora vive para escrever. Mas, a julgar pelos seus
textos, não há propriamente gozo, ou pelo menos não há "alegria do gozo" na experiência
real. Há, ao contrário, frustração
e desilusão diante do real, e a escrita vem, a posteriori, como um
tipo muito particular e inventivo
de vingança pelo relato. O gozo
está na fantasia e na transfiguração da realidade pela escrita.
Nos seus melhores momentos, Márcia Denser se serve da
narradora como alter ego. A
personagem Diana Marini, uma
Diana caçadora de experiências
sexuais e amorosas pela noite
paulistana, faz a transmutação
da desilusão real em mitologia
pessoal, experiência literária.
A autora vê aquilo que a cerca
pelos olhos idiossincráticos e
deformadores da sua narradora.
A ressaca, o sexo casual, a solidão e os desencontros amorosos
voltam como uma desforra literária, como uma forma de desacatar a realidade.
É quando ela fala dos homens,
que em parte representam a incompreensão e a perplexidade
da autora/narradora diante da
imponderabilidade e da intangibilidade do real, de forma especialmente bem-sucedida nos
contos "Memorial de Álvaro
Gardel", "Cometa Austin" e
também na novela "Exercícios
para o Pecado".
A vítima se transfigura numa
mulher que ainda sofre os golpes da experiência, mas agora já
pode revidar, falando como os
detetives existencialistas dos romances B americanos, como se
tivesse se inspirado em traduções de literatura barata antes de
abrir a boca: "Fitou-me com
aqueles olhos maltrapilhos que
me apertavam a garganta como
garras pelo lado de dentro e era a
piedade, eu sabia, a maldita piedade, o remorso de não poder
mais voltar à boca aquela pergunta idiota..." ou "...o homem
necessita especificamente dessa
espécie de liberdade cuja dimensão é o raio da corda que a
qualquer instante pode ser puxada e por isso é tão preciosa".
Márcia Denser/Diana Marini
oscila entre a filosofia de botequim e uma espécie de rococó
erótico: "Teus olhos eram seteiras onde arqueiros sonâmbulos
espreitavam o fogo de batalhas
perdidas há séculos. (...) No escuro teus lábios tatearam o caminho do meu rosto até o local
exato de um beijo amargo". E é
nessa combinação estranha e
kitsch que está parte da sua originalidade, em algum lugar indefinido entre Walter Hugo
Khouri e Caio Fernando Abreu.
Como no título, tudo depende
dos olhos do leitor, à condição
de que seja mantida a ambiguidade e a ironia. A autora, por
exemplo, não colabora em nada
com o leitor inteligente quando,
descolando-se da ambivalência
de sua narradora e de sua ficção,
toma a palavra na apresentação
do livro, mostrando-se decidida
a afastar qualquer dúvida sobre
si mesma: "Atingida a maturidade literária, me confesso uma
escritora cult de linhagem clariceana, cortazariana, faulkneriana e por aí vai". Não é a melhor
parte da obra.
Toda Prosa
Autora: Márcia Denser
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 25 (160 págs.)
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