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CONTARDO CALLIGARIS
Culpa e vergonha (Moralidade 1)
Em 2005, as CPIs escancararam atos de corrupção, apropriações indébitas, malversações
variadas. A campanha eleitoral
deste ano promete uma reprise e
uma ampliação do mesmo espetáculo.
Mesmo assim, a impressão de
muitos é que tudo isso seja apenas
a ponta de um iceberg. É como se
estivéssemos convencidos de que
uma desonestidade endêmica
compromete cada órgão vital do
país, se não cada consciência.
Pagamos a dívida com o FMI,
conseguimos um superávit primário e, quem sabe, com a inflação controlada e a baixa dos juros, a dívida interna diminua.
Mas não há como festejar: o país
nos parece sofrer de um déficit
mais fundamental, que nenhuma
política econômica sarará, um
déficit moral.
Durante o século 20, aliás, muitos sociólogos e ensaístas brasileiros se debruçaram sobre esse déficit moral, perguntando-se como
ele teria chegado a ser um "costume" nacional. Um costume, segundo a definição proposta por
Tocqueville, é um hábito do corpo
e do espírito, um hábito compartilhado por uma coletividade; ele
dá forma a escolhas e atos de maneira, por assim dizer, espontânea, irrefletida.
É nesse contexto que dedico
uma pequena série de colunas
(seguidas, mas com possíveis exceções) ao funcionamento de alguns reguladores da moralidade
em nossa sociedade.
Num livro famoso, "O Crisântemo e a Espada", de 1946, uma
grande antropóloga americana,
Ruth Benedict, tentou entender a
sociedade japonesa.
Ela chegou a uma conclusão
que se tornou clássica: há sociedades em que o comportamento moral é regulado pela vergonha (por
exemplo, o Japão) e outras em
que ele é regulado pela culpa (por
exemplo, as sociedades ocidentais
modernas). Em cada tipo de sociedade, ambos os afetos estariam
presentes como motivações e deterrentes, mas um deles seria dominante.
Nas sociedades em que predomina a vergonha, o sujeito escolhe agir, se abster ou impor limites
à sua ação para não perder a face
e para preservar ou resgatar sua
honra e sua dignidade. Nas outras, o sujeito age para evitar a
culpa ou para expiá-la.
A ação moral concreta é parecida nos dois tipos de culturas. Por
exemplo, em ambos, um sujeito
moral não rouba, mas, no primeiro caso, ele não rouba para evitar
a desonra que espera o ladrão; no
segundo, ele não rouba para não
se sentir culpado.
A vergonha parece ser um regulador perfeito para as sociedades
tradicionais, em que, acima da
lei, vigem os códigos de honra, a
fidelidade ao legado dos ancestrais, o sentimento de uma missão simbólica da estirpe e da casta
-ideais que permitem medir
nosso valor e nossa dignidade.
A culpa seria o regulador das
sociedades individualistas modernas, cuja origem está na idéia
cristã de que o indivíduo deve
pouco ou nada a seu passado e
aos grupos aos quais ele pertence,
mas é contável diante de um Deus
que sabe tudo e, em última instância, julgará e punirá ou recompensará.
O Brasil de hoje é, grosso modo
(voltarei a essa aproximação),
uma sociedade ocidental moderna e fundamentalmente cristã.
Na oposição proposta por Benedict, o sentimento que regula nossa ação moral deveria ser sobretudo a culpa.
No entanto, a sabedoria da língua sugere algo diferente: a malandragem "não tem vergonha
na cara", "sem-vergonha" é uma
fórmula tão corriqueira que se
tornou um adjetivo hifenizado,
assim como "pouca-vergonha" se
tornou um substantivo e o mesmo
vale para "cara-de-pau".
Em matéria de moral, nossa língua espera mais da vergonha que
da culpa. E, ao estigmatizar a
imoralidade, ela deplora mais a
falta de vergonha do que a falta
de culpa.
Apesar da idéia de Benedict,
nossa língua tem razão, sobretudo porque a culpa, de fato, é um
péssimo regulador moral.
À primeira vista, que a gente
acredite ou não nas penas do inferno, pareceria lógico que evitássemos as ações que (como sabemos sempre de antemão) não nos
deixariam dormir tranqüilos.
Mas qualquer terapeuta sabe que
não é assim: a culpa funciona como uma espécie de pagamento
antecipado. Autorizo-me a fazer
algo que me parece errado justamente porque sei que me sentirei
culpado, e meu sofrimento futuro
compra, desde já, o perdão para
meu ato.
A Igreja Católica, quando instituiu o arrependimento e a penitência como condições da confissão, inventou um dispositivo extraordinariamente permissivo.
Posso pecar quanto eu quiser,
pois já me arrependo, sinto-me
culpado, sofro e meu sofrimento
me remirá.
É a mesma dinâmica que funciona quando pedimos desculpas:
numa palavra só, admitimos que
nosso ato é errado, prometemos
que nos sentiremos culpados, e essa promessa nos garante o perdão. Com isso, podemos furar a fila e passar a perna, à condição de
murmurar "desculpe".
A vergonha é um regulador moral muito mais eficaz que a culpa
porque meu sofrimento por perder a face não repara minha honra. Enquanto a própria culpa absolve o sujeito culpado, a vergonha mancha, e sentir vergonha
não restitui a dignidade de ninguém. A única cura da vergonha
está nos atos futuros do sujeito.
Mas como funciona (ou não
funciona), então, a vergonha numa sociedade moderna, como a
nossa?
Continua.
@ - ccalligari@uol.com.br
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