São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"Molloy"

No Pós-Guerra, Beckett expressa o impossível

Escritor ecoa dilema de Adorno, para quem a poesia terminou com Auschwitz

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O mesmo Adorno que afirma que "escrever poesia após Auschwitz é um ato de barbarismo" também diz que a não-repetição de Auschwitz é um imperativo categórico. Como então lembrar a barbárie, se é bárbaro expressá-la, ao menos poeticamente?
Restam a nós, sobreviventes, exclusivamente as linguagens das ciências e da prosa?
O irlandês Samuel Beckett deparou, certamente, com ambas as barbáries: a da guerra e a da expressão poética dessa mesma guerra. Daí dizer, como conta a tradutora Ana Helena Souza na introdução à reedição de "Molloy", que a única alternativa viável para o artista contemporâneo era "a expressão de que não há nada para expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma força para expressar, nenhum desejo de expressar, junto com a obrigação de expressar".
Na trilogia do Pós-Guerra, que inclui o próprio "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", Beckett parece encontrar a solução (se é que se pode falar em solução) para o dilema colocado por Theodor Adorno. Se é impossível expressar-se, talvez possamos nos expressar usando a própria linguagem da impossibilidade. A linguagem do "esmigalhamento, do desmoronamento raivoso", como diz Moran, o segundo narrador desta narrativa que é toda ela poeticamente esmigalhada.
Ao longo de toda esta não-história, deste não-tempo, destes não-personagens, sentimos a potência da expressão da impossibilidade e a ausência absoluta de algo a expressar, ao mesmo tempo que a urgência de dizê-lo.

Partes espelhadas
O livro, na tradução impecável de Ana Helena Souza, divide-se em duas partes. Na primeira, o narrador Molloy -personagem que se arrasta por lugares estranhos, mal come, mal dorme, despreza a esperança e a própria dor, chupa pedras, decompõe-se junto com os próprios dejetos e vai em busca de uma mãe que odeia obsessivamente- narra uma proto-história feita de "nãos", talvez, sem tempo, espaço ou objeto definidos.
O que nos prende a Molloy é justamente seu absurdo: lingüístico e existencial. Sua quase existência martela repetidamente uma definição que ele mesmo lança sobre o que é a vida: "esse rumor que se levanta no nascimento e até mesmo antes e esse insaciável como fazer, como fazer?".
Na segunda parte, um suposto detetive, de nome Moran, recebe a missão de encontrar Molloy, e sua narrativa é o relatório de sua procura. Aparentemente oposto a Molloy em seu asseio, ordenação, observância religiosa e rigidez, aos poucos ele vai se revelando como seu negativo, seu reflexo invertido, adquirindo a mesma doença, o mesmo fastio e ausência de sentido do objeto de sua busca.
O que nos faz pensar que a ordem, da vida e da linguagem, pode não ser mais do que simplesmente um disfarce terrível para uma desordem ainda mais sórdida que a de Molloy, este sim francamente desordenado.
Não há caminhos possíveis na linguagem de Beckett. Mas é justamente essa ausência que estabelece o nó necessário para nunca aceitar o conformismo.


MOLLOY
Autor:
Samuel Beckett
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Globo
Quanto: R$ 32 (264 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Vitrine
Próximo Texto: Trecho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.