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Crítica/"Molloy"
No Pós-Guerra, Beckett expressa o impossível
Escritor ecoa dilema de Adorno, para quem a poesia terminou com Auschwitz
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
O mesmo Adorno que
afirma que "escrever
poesia após Auschwitz
é um ato de barbarismo" também diz que a não-repetição de
Auschwitz é um imperativo categórico. Como então lembrar a
barbárie, se é bárbaro expressá-la, ao menos poeticamente?
Restam a nós, sobreviventes,
exclusivamente as linguagens
das ciências e da prosa?
O irlandês Samuel Beckett
deparou, certamente, com ambas as barbáries: a da guerra e a
da expressão poética dessa
mesma guerra. Daí dizer, como
conta a tradutora Ana Helena
Souza na introdução à reedição
de "Molloy", que a única alternativa viável para o artista contemporâneo era "a expressão
de que não há nada para expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma força para
expressar, nenhum desejo de
expressar, junto com a obrigação de expressar".
Na trilogia do Pós-Guerra,
que inclui o próprio "Molloy",
"Malone Morre" e "O Inominável", Beckett parece encontrar
a solução (se é que se pode falar
em solução) para o dilema colocado por Theodor Adorno. Se é
impossível expressar-se, talvez
possamos nos expressar usando a própria linguagem da impossibilidade. A linguagem do
"esmigalhamento, do desmoronamento raivoso", como diz
Moran, o segundo narrador
desta narrativa que é toda ela
poeticamente esmigalhada.
Ao longo de toda esta não-história, deste não-tempo, destes não-personagens, sentimos
a potência da expressão da impossibilidade e a ausência absoluta de algo a expressar, ao
mesmo tempo que a urgência
de dizê-lo.
Partes espelhadas
O livro, na tradução impecável de Ana Helena Souza, divide-se em duas partes. Na primeira, o narrador Molloy
-personagem que se arrasta
por lugares estranhos, mal come, mal dorme, despreza a esperança e a própria dor, chupa
pedras, decompõe-se junto
com os próprios dejetos e vai
em busca de uma mãe que
odeia obsessivamente- narra
uma proto-história feita de
"nãos", talvez, sem tempo, espaço ou objeto definidos.
O que nos prende a Molloy é
justamente seu absurdo: lingüístico e existencial. Sua quase existência martela repetidamente uma definição que ele
mesmo lança sobre o que é a vida: "esse rumor que se levanta
no nascimento e até mesmo antes e esse insaciável como fazer,
como fazer?".
Na segunda parte, um suposto detetive, de nome Moran, recebe a missão de encontrar
Molloy, e sua narrativa é o relatório de sua procura. Aparentemente oposto a Molloy em seu
asseio, ordenação, observância
religiosa e rigidez, aos poucos
ele vai se revelando como seu
negativo, seu reflexo invertido,
adquirindo a mesma doença, o
mesmo fastio e ausência de
sentido do objeto de sua busca.
O que nos faz pensar que a ordem, da vida e da linguagem,
pode não ser mais do que simplesmente um disfarce terrível
para uma desordem ainda mais
sórdida que a de Molloy, este
sim francamente desordenado.
Não há caminhos possíveis
na linguagem de Beckett. Mas é
justamente essa ausência que
estabelece o nó necessário para
nunca aceitar o conformismo.
MOLLOY
Autor: Samuel Beckett
Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Globo
Quanto: R$ 32 (264 págs.)
Avaliação: ótimo
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