São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2008

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Crítica

Lenda medieval é tema da estréia de Donohue

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como todo romance baseado num mito, "A Criança Roubada", estréia do norte-americano Keith Donohue na ficção, tem a vantagem de contar com um argumento poderoso, cujo potencial dramático sobreviveu ao longo dos séculos. No caso, a lenda medieval européia dos "changelings", seres da floresta que raptam e substituem crianças por duplos treinados para viver entre suas famílias.
Ocorre que a vantagem é apenas aparente, porque um dos desafios do escritor é lidar com o excesso de possibilidades de seu material. Donohue cairia na armadilha se ficasse limitado ao registro da lenda, o que esgotaria sua história em meia dúzia de páginas e não a descolaria das ressonâncias psicológicas e romanescas de um imaginário comum. Afinal, mesmo não sendo tão conhecidos em países como o Brasil, os "changelings" e seus coadjuvantes encarnam temas típicos das fábulas infantis: a busca da identidade, a solidão do crescimento, o medo do desconhecido.
Em termos estruturais, "A Criança Roubada" resolve parte desse impasse por meio da alternância de narradores. A história é contada tanto por Henry Day, um menino de 8 anos que, depois de seqüestrado, passa a viver como "changeling" e é rebatizado de Aniday, quanto pelo "changeling" original que se torna Henry Day. O primeiro atravessará décadas tentando se adaptar a um mundo de sombras, fadas e demônios. O segundo enfrenta a desconfiança do pai, revela talento para a música, vai à faculdade e, em meio às mudanças sociais e culturais dos anos 60 e 70, vai atrás dos segredos de sua antiga "encarnação" como humano.
No jogo de espelhos que se forma entre as duas falas, cada uma com subjetividades, ambas narrando de pontos de vista diversos os mesmos eventos, cria-se uma zona de dúvida que afasta a tentação de apontar para um sentido geral do enredo, como ocorre nas fábulas tradicionais.
Outra conseqüência da ambigüidade é a superação do modelo que o livro aparentemente segue, o do romance de formação, em que se descreve as transformações de um personagem da infância até o início da idade adulta. Isso porque os atos dos protagonistas são confrontados com uma espécie de avesso, que muda o sentido ou relativiza as esperadas reações de simpatia ou repulsa do leitor. O que é sucesso de um, claro, remete imediatamente ao fracasso do outro, já que os dois são algozes e vítimas numa mesma encenação trágica.
Dessa subversão de convenções narrativas, digamos assim, surge uma fantasia "sui generis", em que não se chega a torcer por nenhum dos personagens, mas suas trajetórias são acompanhadas com interesse até o final.
Num livro de 368 páginas, isso não é pouco. Sendo este livro uma estréia, é um feito considerável.


MICHEL LAUB é autor dos romances "Longe da Água" (2004) e "O Segundo Tempo" (2006), ambos publicados pela Companhia das Letras

A CRIANÇA ROUBADA
Autor:
Keith Donohue
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 49,90 (368 págs.)
Avaliação: bom


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