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Crítica
Lenda medieval é tema da estréia de Donohue
MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA
Como todo romance
baseado num mito,
"A Criança Roubada", estréia do norte-americano Keith Donohue na ficção, tem a vantagem de contar com um argumento poderoso, cujo potencial dramático sobreviveu ao longo
dos séculos. No caso, a lenda
medieval européia dos
"changelings", seres da floresta que raptam e substituem crianças por duplos
treinados para viver entre
suas famílias.
Ocorre que a vantagem é
apenas aparente, porque um
dos desafios do escritor é lidar com o excesso de possibilidades de seu material. Donohue cairia na armadilha se
ficasse limitado ao registro
da lenda, o que esgotaria sua
história em meia dúzia de
páginas e não a descolaria
das ressonâncias psicológicas e romanescas de um imaginário comum. Afinal, mesmo não sendo tão conhecidos em países como o Brasil,
os "changelings" e seus coadjuvantes encarnam temas típicos das fábulas infantis: a
busca da identidade, a solidão do crescimento, o medo
do desconhecido.
Em termos estruturais, "A
Criança Roubada" resolve
parte desse impasse por
meio da alternância de narradores. A história é contada
tanto por Henry Day, um
menino de 8 anos que, depois
de seqüestrado, passa a viver
como "changeling" e é rebatizado de Aniday, quanto pelo "changeling" original que
se torna Henry Day. O primeiro atravessará décadas
tentando se adaptar a um
mundo de sombras, fadas e
demônios. O segundo enfrenta a desconfiança do pai,
revela talento para a música,
vai à faculdade e, em meio às
mudanças sociais e culturais
dos anos 60 e 70, vai atrás
dos segredos de sua antiga
"encarnação" como humano.
No jogo de espelhos que se
forma entre as duas falas, cada uma com subjetividades,
ambas narrando de pontos
de vista diversos os mesmos
eventos, cria-se uma zona de
dúvida que afasta a tentação
de apontar para um sentido
geral do enredo, como ocorre
nas fábulas tradicionais.
Outra conseqüência da
ambigüidade é a superação
do modelo que o livro aparentemente segue, o do romance de formação, em que
se descreve as transformações de um personagem da
infância até o início da idade
adulta. Isso porque os atos
dos protagonistas são confrontados com uma espécie
de avesso, que muda o sentido ou relativiza as esperadas
reações de simpatia ou repulsa do leitor. O que é sucesso de um, claro, remete
imediatamente ao fracasso
do outro, já que os dois são
algozes e vítimas numa mesma encenação trágica.
Dessa subversão de convenções narrativas, digamos
assim, surge uma fantasia
"sui generis", em que não se
chega a torcer por nenhum
dos personagens, mas suas
trajetórias são acompanhadas com interesse até o final.
Num livro de 368 páginas,
isso não é pouco. Sendo este
livro uma estréia, é um feito
considerável.
MICHEL LAUB é autor dos romances "Longe
da Água" (2004) e "O Segundo Tempo"
(2006), ambos publicados pela Companhia
das Letras
A CRIANÇA ROUBADA
Autor: Keith Donohue
Tradução: Cássio de Arantes Leite
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 49,90 (368 págs.)
Avaliação: bom
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