São Paulo, sexta-feira, 02 de março de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Alegria, alegria, a camisa-reclame e o fardão

O balanço de qualquer Carnaval, por tradição e gosto, é sempre melancólico. Não é mais tempo de chorar as colombinas que traíram o pierrô lunar com o arlequim servidor de todos os amos. Eles passaram de moda. Davam um clima de desafio, de dor-de-corno e de pecado aos carnavais de antigamente. Daí a nostalgia recorrente de todos eles.
Este que passou não deverá deixar saudades. De um lado, tivemos de acompanhar o drama do governador Mário Covas. Mesmo aqueles que não o admiram politicamente, como é o meu caso, tivemos de permanecer atentos e tensos, pedindo aos nossos deuses preferenciais que dessem ao homem valente a força e a recompensa de que ficou merecedor pelo grande exemplo de dignidade humana que tem sabido dar em momentos supremos.
Por mais que a chamada folia tomasse conta dos óbvios foliões (por que serão sempre os mesmos?), havia um background dramático além da doença de Covas. O que virá por aí, com a oposição, tão encalistrada até aqui, recebendo o reforço inesperado de um tanque que sempre estava atuando do outro lado? A esse respeito, lembrei em crônica de ontem, na página A 2, que Churchill foi criticado asperamente por se aliar a Stálin contra Hitler. Disse ele na ocasião: "Se o demônio estiver contra Hitler, eu me aliarei ao demônio".
Evidente que ACM não chega a ser um tirano sanguinário como Stálin nem FHC chega aos pés de Hitler em matéria de malignidade. A comparação sempre claudica -diziam os romanos. Mas esclarece o que a gente pretende dizer.
Deixando de lado o pano de fundo deste Carnaval que passou, vamos à objetividade de um folião desnaturado que não saiu de casa, ficou pela Lagoa mesmo, volta e meia acessava a Internet e ciscava com o controle remoto da TV.
Primeiro pasmo: aquele homem voando em cima do sambódromo. Vá ser destaque assim no inferno! Nem a Nasa daria colher de chá àquele ET que não tinha samba no pé, veio de fora, com roupa de fora e, além de nada ter com o Carnaval, nada tem a ver com nossas tradições, aspirações, fobias, deslumbramentos. Não pertence nem à lenda nem à história de nossa gente.
Admiro Joãosinho Trinta há anos, desde que o conheci como bailarino do corpo de baile do Teatro Municipal do Rio. Que, aliás, foi um antro de bons carnavalescos, como Mario Conde, Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues, Newton de Sá, Geraldinho Cavalcânti e tantos outros. Joãosinho era pequenino, não podia fazer carreira no balé clássico, a não ser em papéis de caráter. Deu a volta por cima e revelou-se um gênio das montagens, o mestre dos efeitos especiais.
Mas exagerou desta vez. Pisou feio na bola. Aberto o precedente, nos desfiles que virão por aí, e em matéria de efeitos especiais teremos naufrágios do Titanic, ("se o Titanic não virar, olê, olê, olá, eu chego lá"). Como tudo será possível, ainda veremos o emocionante enredo "Batman e Robin na Corte do Rei Artur", sem esquecer a gentil mistura do terror com a inocência: "Branca de Neve contra o Exorcista Canibal".
Pessoalmente, é claro que prefiro coisas mais amenas e menos espetaculares. Daí que, em matéria de desfiles, só vi as fotos publicadas nas folhas dos dias seguintes. Passei grande parte da minha vida profissional editando números de Carnaval em revistas que estouravam nas bancas nos dias seguintes. O editor Alfredo Machado, da Record, comprava 200 exemplares para mandar a seus amigos no exterior. Ele dizia: "O melhor Carnaval do mundo não é no Rio nem na Bahia. É na "Manchete" e "Fatos&Fotos" ".
Nos jornais de quarta-feira, vi uma foto que me emocionou. Quatro amigos que admiro, admiro e louvo sempre que posso, com caras patibulares no camarote da Brahma, vestidos a caráter, com aquela camisa complicada da cerveja, óculos para ver a realidade em três dimensões (coisa que eu faço sem óculos) e com as credenciais ostensivamente penduradas nos peitos ilustres.
Além de ilustres, são escritores de sucesso garantido, estão entre os melhores dos melhores. Olhando a foto deles, fiquei consolado pelo fato de, em evento menos carnavalesco, ter vestido o fardão da Academia que a tantos horroriza. Fiquei parecido com um gafanhoto, um louva-a-deus comprido e na vertical.
Sei de muitos escribas, com milhões de qualidades superiores a meus escassos e discutíveis méritos, que preferem morrer embaixo da ponte a ter de pagar o mico de vestir o fardão da Academia, na qual não entram porque não querem.
Além de me emocionar, a foto me consolou. Não tenho nada contra as cervejas, prefiro a Antártica, mas não desdenho a Brahma, embora as duas tenham se misturado acionariamente. Tirante uma detestável cerveja italiana, chamada Nastro Azurro, topo qualquer uma, desde que não seja estupidamente gelada.
Entre o fardão e a camisa-reclame da Brahma, tudo é folia, alegria, alegria, que os tempos são chegados e o doutor mandou todo mundo sambar.


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