São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Estava escrito


Primeiro romance do vencedor do Prêmio Nobel Naguib Mahfouz, a obra "O Jogo do Destino", com trama inspirada em Walter Scott e ambientada no Antigo Egito, será lançada no próximo mês, pela editora Record


Pouco tempo depois, o príncipe Hordadif voltou acompanhado de um robusto velho, de olhar aguçado e penetrante, coroado de cabelos brancos e uma longa barba que cobria seu peito. Usava uma túnica larga e se apoiava num cajado comprido. O príncipe se inclinou e disse:
- Meu senhor, aqui está vosso devoto servo, o mágico Didi.
O mágico se prosternou ante o rei, beijou o chão diante de seus pés e disse num tom que despertou os corações dos presentes:
- Senhor, filho de Knanum, luz do sol, senhor do Universo, que a vossa glória e a vossa felicidade sejam eternas!
O rei o recebeu com simpatia e o fez sentar-se numa cadeira perto dele:
- Como não o conheci antes, uma vez que você viu a luz do mundo 70 anos antes de mim? O longevo mágico gentilmente respondeu, dizendo:
- Deus vos deu a vida, a saúde e a força! Um homem como eu só pode vir a vossa presença quando convidado.
O rei sorriu e, com interesse, fez-lhe outras perguntas:
- É verdade que você faz milagres, Didi? É verdade que com sua vontade consegue subjugar o homem e o animal e que consegue revelar o rosto do tempo, levantando o véu do além?
O mágico inclinou a cabeça, até que a barba se dobrasse em seu peito:
- Isto é verdade, meu senhor.
O rei disse:
- Queria ver alguns desses milagres, Didi.
Chegou a hora do prodígio. Todos ficaram de olhos bem abertos, para ver o mágico começar o seu trabalho, mas ele, por sua vez, ficou parado como se estivesse se transformando numa estátua. Em seguida sorriu, mostrando seus afiados dentes caninos e deu uma rápida mirada nos rostos dos presentes.
O mágico disse ao rei:
- À minha direita bate um coração que não acredita em mim.
Todos se olharam assombrados e perplexos. O rei gostou da perspicácia do mágico e perguntou a seus homens:
- Há entre vocês alguém que não acredita nos milagres de Didi?
O comandante Arbo sacudiu seu ombro com indiferença e aproximou-se do rei e disse:
- Meu senhor, eu não acredito em truques de magia, acho que são um tipo de mentiras e artimanhas, que qualquer homem pode praticar, desde que se dedique a elas.
O rei disse-lhe:
- Para que falar se o homem está entre nós? Que tragam para Didi um leão faminto, e vamos ver como ele pode domá-lo com sua magia.
O comandante, que não parecia estar convencido, disse para o rei.
- Perdão, senhor, não me interessam os leões. Eu me ofereço para que ele, com sua magia e sua arte, prove a todos os presentes que é capaz de me dominar e de tirar minha vida.
Fez-se um pesado silêncio. Alguns dos presentes calavam-se atemorizados, outros regozijavam-se, aparentando curiosidade. Todos queriam ver o que o mágico faria com o teimoso comandante. Este estava tranquilo e confiante, com um sorriso nos finos e delicados lábios. O rei deu uma grande risada e disse para Arbo, ironizando-o:
- Não teme por sua vida, Arbo?
O comandante respondeu com muita firmeza:
- Minha alma, senhor, é tão forte quanto a minha mente; é tão forte que vai suplantar os truques da magia.
Zangado e nervoso, o príncipe Hordadif se dirigiu ao comandante, respondendo em tom enérgico:
- Que seja feita a sua vontade, e que meu pai permita ao mágico aceitar o desafio.
O rei olhou para seu irado filho e depois para o mágico:
- Mostre-nos como sua magia desafia a força do nosso amigo Arbo!
O comandante Arbo observou o mágico com um olhar altivo e quis desviá-lo de seu rosto com desprezo. Porém ele sentiu uma força, que vinha de seus olhos, atraindo-o para o homem. Foi dominado pela raiva, sofrendo uma forte pressão na nuca. Tentou desviar seus olhos da terrível força que os atraía, mas não conseguiu. Seu olhar se fixara nos esbugalhados e relampejantes olhos de Didi, que reluziam e fumegavam como dois lumes refletindo os raios do sol, ofuscando os olhos de Arbo, cegando-os e tirando-lhes a luz do mundo. Arbo perdeu a força e tornou-se dócil e obediente.
E quando Didi teve a certeza de seu total domínio, levantou-se, ficou de pé, apontou para seu assento e gritou para o comandante, em tom imperativo e forte: "Sente-se"... Submisso, o comandante obedeceu à ordem e foi cambaleando como um embriagado. Jogou-se sobre a cadeira, como se estivesse a ponto de morrer. Aqueles que a tudo assistiam se impressionaram bastante com tal façanha. O príncipe Hordadif sorriu, aliviado. Quanto a Didi, olhou para o faraó com reverência e disse muito educadamente:
- Senhor, poderia ordenar-lhe o que eu quisesse, e em nada me desobedeceria, porém, senti pena dele por ser um grande comandante da nossa pátria e um dos discípulos do faraó. Acaso acreditais, meu senhor, no que vistes?
O faraó balançou a cabeça, concordando. O mágico se dirigiu ao desconcertado comandante e passou levemente os dedos em sua testa, recitando, em voz baixa, um estranho sortilégio. Pouco a pouco o comandante começou a despertar, recuperando a consciência. Ficou um longo tempo aturdido, olhando para o que estava à sua volta e era como se ele não entendesse nada do que via. Em seguida, seus olhos se fixaram no rosto de Didi. E, lembrando do acontecido, sua face avermelhou-se. Evitando olhar para o temível homem, dirigiu-se, apressadamente, para o seu assento, envergonhado e submisso.
O rei sorriu para o comandante e disse com delicadeza:
- O nosso amigo não mente!
O comandante inclinou sua cabeça e, em voz baixa:
- Benditos sejam os milagres e as forças dos deuses, assim na terra como nos céus!
Em seguida, o rei disse para o mágico:
- Muito bem, homem poderoso! Será que você possui poderes sobre o além como possui sobre os mortais?
O mágico respondeu confiante:
- Sim, meu senhor.
Por um momento o rei refletiu, questionando-se sobre o que poderia perguntar. Uma luz iluminou seu rosto e disse para o mágico:
- Pode me dizer até quando os reis da minha estirpe ocuparão o trono do Egito?
O mágico pareceu angustiado e temeroso. O faraó, compreendendo que algo se passava dentro de seu peito, disse-lhe:
- Tem liberdade para falar. Confio piamente em você.
E o homem lançou um olhar profundo para o rosto do seu senhor. Em seguida, elevou sua cabeça para o céu, mergulhando em uma oração fervorosa, durante uma hora, sem se mover, nem falar. Quando virou o rosto para o rei e seus amigos, tinha-o pálido, bem como os lábios e o olhar atônito. Os corações das pessoas tremeram e pressentiram um mal pairando no ar. O príncipe Ra'kha'uf perdeu a paciência e disse-lhe:
- Por que não fala, já que o rei lhe deu liberdade?
O homem engoliu em seco e disse para o rei:
- Meu senhor, depois de vós ninguém de vossa estirpe ocupará o trono do Egito!
Suas palavras provocaram uma grande inquietação entre os presentes, como se fossem uma surpreendente rajada de vento, derrubando uma árvore firme. Todos dirigiram olhares de reprovação ao mágico, como se emitissem centelhas. O faraó, por sua vez, franziu a testa e seu rosto escureceu. Parecia um leão enfurecido de raiva. O rosto do príncipe Ra'kha'uf empalideceu, mordendo seus lábios cruéis. Seu aspecto pressagiava morte e desgraça.
O mágico, como se quisesse atenuar o peso de suas profecias, disse:
- Governareis, meu senhor, em paz e segurança até o último de vossos dias.
Com voz assustadora, o faraó balançou os ombros, desprezando o mágico:
- Certamente, aquele que trabalha para si mesmo é como se trabalhasse para a morte. Pare de me consolar e conte: sabe quem os deuses preparam para me suceder ao trono do Egito?
O mágico respondeu:
- Sim, meu senhor. O vosso sucessor será um menino recém-nascido, que veio à luz na manhã de hoje.
-Quem são seus pais?
-Seu pai é Mun-Rá, o grande sacerdote de Rá, o adorado de Awn. E sua mãe, a jovem senhora Radda Didit, com quem se casou, apesar da pouca idade, para que lhe desse um filho herdeiro, cujo nome foi escrito nas páginas do destino dos sábios.
O faraó se levantou furioso como um leão, e, com ele, todos se levantaram. Ficou a dois passos do mágico. Desviando o olhar do homem e engolindo em seco, disse:
- Está seguro do que diz, Didi?
O mago respondeu com voz rouca:
- Meu senhor, eu vos revelei o que li nas páginas do além. O rei disse:
- Não tema a minha fúria, não fique triste. Você deu a sua mensagem e cumpriu o seu dever, receberá uma boa recompensa.
O ministro da câmara do rei foi chamado para pagar os honorários ao mágico, que seria recompensado com 50 barras de ouro. Aquele acompanhou Didi e os dois saíram...
O príncipe Ra'kha'uf estava profundamente desolado. Seu olhar era tão cruel quanto seu coração. Seu rosto de ferro estampava a imagem da morte. Quanto ao faraó, este não se abateu nem se queixou, mas em seu íntimo estava irado; era uma ira capaz de destruir montanhas e vencer o terror. Dirigiu-se a seu ministro, Khomini, e falou-lhe com voz poderosa:
- Que acha, sábio Khomini, será que o destino é inevitável?
Khomini levantou as sobrancelhas, meditando, mas seus lábios não escondiam sua perplexidade e sua tristeza. O rei disse-lhe com reprovação:
- Vejo que teme dizer a verdade. Acha que, negando a sabedoria, estaria me agradando? Não, Khomini, o seu rei é tão grande quanto a verdade...
Khomini não era covarde, tampouco hipócrita, mas era leal ao rei e aos príncipes; era um homem solidário. Quando viu que não tinha mais como ocultar a verdade, decidiu falar em voz baixa:
- Meu senhor, a sabedoria egípcia, inspirada pelos deuses a nossos antepassados e legada à posteridade pelo sábio Qáquimna, diz que o destino é inevitável.
Khufu olhou para seu herdeiro e perguntou-lhe:
- E você, príncipe herdeiro, qual é a sua opinião sobre o destino?
O príncipe não disse nada, mas olhou para seu pai como um leão enjaulado. O rei, então, sorriu e disse:
- Senhores, se o destino fosse como dizem, o mundo não teria sentido. A sabedoria da vida seria inútil, e o homem perderia a nobreza. Não teria sentido esforçar-se ou não, trabalhar ou ficar ocioso, acordar ou dormir, ser forte ou fraco, revoltar-se ou submeter-se. Não, senhores, certamente o destino é um conceito decadente, que não ameaça os fortes...
O coração do comandante Arbo encheu-se de entusiasmo:
- Vossa sabedoria é incompatível, meu senhor.
O faraó sorriu e disse com serenidade:
À nossa frente há um menino que não está longe de nós. Portanto, comandante Arbo, prepare uma expedição com carros de guerra que eu mesmo comandarei até Awn, para ver com meus próprios olhos esta pequena criatura do destino...
Surpreso, Khomini disse:
- O faraó vai pessoalmente?
O rei sorriu e disse:
- Se eu não defender pessoalmente meu trono, quem o fará?... Vamos, senhores... Convoco vocês à luta para que vejam a terrível batalha entre Khufu e o destino..."
As casas que o faraó havia mandado construir para as famílias dos trabalhadores mortos situavam-se fora das brancas muralhas de Mênfis, a leste da colina sagrada. Eram casas simples e modestas de dois pisos, com quatro amplos quartos cada um. Zaya e seu filho ocuparam uma das casas, acostumando-se a viver entre viúvas, mães que perderam seus filhos e meninos órfãos. Algumas choravam, outras tinham cicatrizadas as feridas pelo curso do tempo. Todas trabalhavam e formavam um grupo empreendedor e ativo. Os meninos distribuíam água aos trabalhadores e as mulheres vendiam comida e cerveja. O bairro da desgraça se transformou em um mercado florescente e barato, que atraía os trabalhadores, difundindo o desenvolvimento e anunciando seu futuro de cidade esplendorosa...
Os primeiros dias de Zaya em sua nova vivenda transcorreram em constantes prantos pelo falecimento do marido. O luto a fazia sofrer tanto que nem as pensões nem as atenções de Bisharo, o inspetor-geral das pirâmides, conseguiam aliviar as suas dores. Que lástima! Se os aflitos soubessem que a morte apaga as lembranças e que as tristezas desaparecem do coração dos vivos com a mesma rapidez com que desaparece o morto, poupariam muitas tristezas e sofrimentos. Os problemas cotidianos a faziam esquecer e a consolavam do amargor da morte. Em poucos meses na nova casa, vivia enfastiada, estava convencida de que aquele não era o lugar apropriado para ela nem para seu filho, mas não havia outra alternativa exceto ter paciência e conviver com o tédio.
Durante aqueles meses, o inspetor Bisharo fez-lhe várias visitas, quando ia inspecionar as casas. É verdade que ele visitava muitas viúvas, mas Zaya se distinguia das outras pela compaixão e pelo amor. Sem dúvida, as viúvas eram tão infelizes quanto ela, mas nenhuma tinha olhos doces e cálidos, nem um corpo esbelto e suave como o de Zaya. Ela se dizia, mergulhada em suas reflexões: "Que homem bom, baixinho, gordinho, de feições rudes, 40 anos de idade mais ou menos, porém é de um coração amável...!". Havia observado que sua expressão mudava quando ele fitava seu corpo esbelto: suas pesadas pálpebras se agitavam, os espessos lábios se distendiam e a timidez substituía a presunção e o orgulho de seu olhar. Quando trocavam frases amáveis, por alguns segundos ele ficava estático como um javali acuado. No coração de Zaya brotavam desejos, queria desembainhar suas armas para se relacionar com o generoso inspetor. Certa vez, aproveitou a oportunidade para se queixar da solidão e da triste situação naquele lugar miserável. Disse-lhe:
- Quem dera pudesse ser útil em outro lugar, meu senhor, pois servi durante um longo tempo no palácio de um dos eminentes de Awn. Tenho larga experiência em tudo que se refere a serviços domésticos.
O inspetor arqueou as grossas sobrancelhas e olhou para a viúva com avidez:
- Entendo, Zaya, não se queixe de inatividade. Sei que está acostumada a viver em palácios e não aguenta mais ficar nesta vida miserável.
A muito astuta sorriu com coqueteria e, descobrindo a linda carinha de Dedef, disse:
- Acaso um lugar como este é adequado para um rosto tão formoso?
O inspetor respondeu:
- Absolutamente. Nem para você. Tenho esse palácio que você quer, espero que ele a queira também.
- Estou à disposição do meu senhor.
- Minha mulher morreu e deixou dois filhos. Tenho quatro criadas, quer ser a quinta, Zaya?
E desde aquele dia, Zaya e o pequeno Dedef se mudaram do bairro dos miseráveis para o harém do belo palácio do inspetor das pirâmides, Bisharo, cujo jardim se estendia até o sagrado Nilo. Ela se mudou para lá como criada distinta das demais. O ambiente era favorável e livre para desenvolver seus encantos e sua magia, porque o palácio não tinha nenhuma ama poderosa; e porque ganhou o afeto dos dois filhos do inspetor, que também a ajudaram a conquistar o coração de seu senhor. Acabaram se casando. Zaya passou a ser a dona do palácio e supervisora na educação de seus filhos, Khana e Nafa. Sua astúcia não lhe faltou nunca, e desde o princípio jurou que não se descuidaria jamais do bom trato dos meninos e que seria uma mãe boa e afetuosa para eles.
E, assim, a vida sorriu para Zaya, que conheceu o mundo da felicidade depois de tantos infortúnios."


Texto Anterior: Trechos
Próximo Texto: Mahfouz enlaça a antiguidade ao destino
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.