São Paulo, segunda, 2 de março de 1998

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As águas de março dando trégua ao verão

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Bar do porto de Fernando de Noronha. Fim de tarde. Os barcos devolvem os turistas com nadadeiras coloridas, snorkels, câmeras de filmar. Instrutores de mergulho consultam seus computadores de pulso para rever seu trabalho diário e os cilindros de ar comprimido são depositados ruidosamente no cimento. Aves disputam peixes com os pescadores de linha e o sol se põe atrás das imensas montanhas de pedra.
Penso: esse movimento continua o tempo todo, mas, para mim, o verão está acabando. Segunda recomeça o trabalho num ritmo intenso e, daqui em diante, só me resta ver a água esfriar gradativamente até as desertas piscinas de julho.
Que verão foi este? Ironicamente democrático. Foi tão quente, que todos adotamos o uniforme do morro: short e sandálias havaianas, o modo mais inteligente de vestir. Bem que os produtores de sandálias intuíram essa igualdade e produziram, há uns dois anos, uma cor exclusiva para clientes especiais: o branco.
Mas a segregação pictórica não tinha futuro. O branco tornou-se uma cor como as outras e surgiram outras, mais brilhantes que deixaram o branco no chinelo.
Outro aspecto da democratização viajaria nas nuvens do El Niño. Nós que víamos os pobres na televisão, chorando a perda de seus barracos, passamos a perder casas e apartamentos e os jornais noturnos se encheram de profissionais liberais lamentando seus bens que rolaram água abaixo.
Vi um Santana ser destruído em questão de minutos, e alguns livros caros se perderam com a chuva. As páginas colaram e é difícil suportar o mau cheiro que exala delas, quando tentamos descolá-las. Heidegger jamais poderia imaginar que seu ensaio sobre Nietzsche iria feder tanto, aos pés da estante num país latino.
Foi também um verão de perdas eletrônicas. Os aparelhos não suportaram os bruscos cortes de luz e entraram em pane. Computadores e periféricos se tornaram incompatíveis com a própria realidade, os liquidificadores trituraram os certificados de garantia.
O mais perturbador é que, apesar de tudo, foi um verão bonito em muitos lugares do Brasil. E talvez quatro graus mais quente. Os golfinhos continuaram chegando às 6h em sua enseada, e os machos faziam um triângulo nas águas azul-turquesa perseguindo uma única fêmea. As tartarugas continuaram a se reproduzir em muitos lugares, e mesmo os tubarões ainda conseguem resistir em Fernando de Noronha -ou, quem sabe, foram se concentrar nas águas em torno do Atol das Rocas.
Não há nada a reclamar: cascas de coco, sapos atropelados no asfalto, uma febre do dengue. Nesse ritmo chegaremos às águas de março: é pau, é pedra, é o fim do caminho.
O problema dos versos de Tom é que as águas de março vêm para fechar o verão. O ideal é que o verão se fechasse sem elas. Precisamos de uma dose final de beleza tranquila, algo que nos dê saudade de um verão menos trágico.
E nós, de também tempo, para pensar em mudanças. É terrível se sentir tão despreparado, tão cigarra tropical. Que na sua beleza ele desperte um sentimento de formiga, que o inverno, em alguns países, soube tão bem suscitar.
Era preciso que a gente aplicasse aquela lei: tudo o que pode molhar acabara se molhando, tudo o que pode entupir acabara se entupindo, tudo que poderá desabar acabara desabando, tudo o que poderia queimar, infelizmente, acabara se queimando.
Isso daria a um imenso programa de trabalho, em todos os níveis, o mínimo de previsibilidade, que na verdade já existe em alguns pontos como o elogiado plano de Blumenau para enfrentar os efeitos do El Niño.
Só assim o verão deixaria suas marcas para além do bronzeado da pele, romances casuais e cinematográficos crepúsculos. É uma estação bonita demais para se associar ao horror de casas caindo, ruas transbordando e matas ardendo pateticamente, monitoradas por um distante e impotente satélite.
Proponho um conselho de verão formado por todos que gostam dele e querem melhorar sua imagem para que as novas gerações possam desfrutá-lo, vivendo suas primeiras grandes paixões, seus primeiros mergulhos, primeiros encontros com os golfinhos e possam coabitar em paz com os tubarões nas piscinas azuis de Fernando de Noronha.



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