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MARCELO COELHO
Uma internet mais turva
Como a maioria dos paulistanos, o videomaker Tadeu
Jungle passa umas duas horas por
dia no trânsito. De setembro de
2002 a fevereiro deste ano, tirou
cerca de mil fotos enquanto ficava preso no congestionamento.
Quem visitar seu site (www.tadeujungle.com.br/heavyrain) vai
encontrar algumas delas.
"Heavy Rain", ou "40 Fotos da
Cidade de São Paulo, Debaixo de
Chuva, Feitas de Dentro de um
Carro" é o nome dessa exposição
virtual.
Acho meio cansativo buscar e
ver coisas pela internet. Não tenho nenhum tipo de conexão rápida. Uma vez quis me informar
sobre o assunto, mas só para decidir entre Speedy ou Flash ou Vírtua ou Super-21, as questões e
pressupostos eram tantos que
meu sistema nervoso ficou fora do
ar.
Certa lentidão para baixar as
imagens de "Heavy Rain" acrescenta charme à obra de Tadeu
Jungle. A foto vem vindo aos poucos, de cima para baixo, como
uma cortina descendo sobre a tela. O tempo "fecha", reproduz-se
um ruído de chuva e tudo se torna mais turvo na internet, um
meio em geral tão nervoso e acidentado, movido a cliques, impulsos mínimos e recompensas
abstratas.
Muitos sites fazem a gente se
sentir um ratinho de laboratório,
apertando teclas de "sim" ou
"não", decidindo em cada encruzilhada. "É isso mesmo o que você
quer? Confirme mais uma vez".
Ou: "Você está prestes a ser direcionado para uma conexão insegura"... avisos e mais avisos. Numa hora sempre se comete um erro e é preciso arrepiar carreira, recorrendo ao ícone "voltar" até
dar certo. No fundo, o mouse da
história sou eu.
Num congestionamento em São
Paulo, contudo, não há decisões a
tomar. A materialidade de um
meio obstruído, invencível, impõe-se pesadamente. O farol verde e o vermelho se alternam sem
chance para cliques, exceto os de
uma máquina fotográfica...
São imagens bonitas e estranhas. Algumas, tiradas à noite,
mostram as lanternas do carro da
frente como uma aparição monstruosa, deformada pelas gotas de
chuva. Prefiro outras, quase sem
cor: uma árvore do lado esquerdo, a rua vazia em frente ou uns
galhos de salgueiro à direita ficaram granulados e cinzentos como
numa gravura de Seurat.
Mas não é com a arte impressionista que se parece a maior parte
das figuras. Uma foto de casas
quase desfeitas pela água lembra
os quadros de Munch ou de Vlaminck: cenário de terror ou, pelo
menos, de fantasmagoria.
Sob uma chuva de meteoros
brancos, não sei se a fachada é de
um estacionamento ou de um cinema abandonado no centro da
cidade, se há gente passando ou
não. Outra imagem fala de um
muro grafitado. É o que indica o
título. Mas onde está? Sobre o
muro cinzento, usaram tinta
branca ou prateada. Os reflexos
da chuva no vidro se confundem
com duas ou três letras angulosas:
fantasmas de um grafite.
Impliquei um pouco com a
idéia de dar títulos em inglês à
maioria das fotos: "Water Houses", "Far Avenue Building", "I
Want to Go Home". Sem dúvida,
essas imagens de São Paulo lembram a estética de "Blade Runner" e de outros filmes "cult" dos
anos 80.
Era uma década em que o uso
do inglês servia para dar distanciamento e frieza estética ao presente subdesenvolvido. Nesse sentido, o projeto de Tadeu Jungle
parece "revisitar" um período que
era, em si mesmo, caracterizado
pelas "revisitações", pelos "revivals", por uma certa nostalgia desemocionada e irônica.
Chama a atenção, por exemplo,
que as fotos de "Heavy Rain" imitem não apenas a pintura pontilhista ou expressionista mas também as produções do hiper-realismo, que justamente queriam imitar, na pintura, a... fotografia.
Contudo, se tomarmos como
comparação a poesia das paisagens paulistanas de Gregório
Gruber, por exemplo, veremos
que um outro estilo, mais tenso,
intervém nas fotos de Jungle. O lado "pintura" convive com sensações que lembram, por exemplo,
as cenas de um filme como "O Invasor", de Beto Brant: as luzes dos
semáforos e dos anúncios, agressivas, surgem numa tela "dura", a
do computador, que não tem a
suavidade do quadro.
As luzes e os contornos da cidade se deformam do mesmo modo
que um som, uma buzinada, um
grito ficariam distorcidos ao se
propagarem na água. Esse meio
líquido, a chuva, cobre o mundo
de irrealidade.
O poeta Saint-John Perse disse
que a chuva faz todas as coisas
parecerem "o lado avesso de um
sonho". Não há eufemismo, ocultamento, filtragem da realidade
nas fotos de Tadeu Jungle, mas é
como se houvesse, lá fora, um pesadelo de que tentamos nos proteger. Nada mais doméstico e sedentário do que a internet;
"Heavy Rain" sugere outras paragens.
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