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São Paulo, quarta-feira, 02 de abril de 2003

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MARCELO COELHO

Uma internet mais turva

Como a maioria dos paulistanos, o videomaker Tadeu Jungle passa umas duas horas por dia no trânsito. De setembro de 2002 a fevereiro deste ano, tirou cerca de mil fotos enquanto ficava preso no congestionamento. Quem visitar seu site (www.tadeujungle.com.br/heavyrain) vai encontrar algumas delas.
"Heavy Rain", ou "40 Fotos da Cidade de São Paulo, Debaixo de Chuva, Feitas de Dentro de um Carro" é o nome dessa exposição virtual.
Acho meio cansativo buscar e ver coisas pela internet. Não tenho nenhum tipo de conexão rápida. Uma vez quis me informar sobre o assunto, mas só para decidir entre Speedy ou Flash ou Vírtua ou Super-21, as questões e pressupostos eram tantos que meu sistema nervoso ficou fora do ar.
Certa lentidão para baixar as imagens de "Heavy Rain" acrescenta charme à obra de Tadeu Jungle. A foto vem vindo aos poucos, de cima para baixo, como uma cortina descendo sobre a tela. O tempo "fecha", reproduz-se um ruído de chuva e tudo se torna mais turvo na internet, um meio em geral tão nervoso e acidentado, movido a cliques, impulsos mínimos e recompensas abstratas.
Muitos sites fazem a gente se sentir um ratinho de laboratório, apertando teclas de "sim" ou "não", decidindo em cada encruzilhada. "É isso mesmo o que você quer? Confirme mais uma vez". Ou: "Você está prestes a ser direcionado para uma conexão insegura"... avisos e mais avisos. Numa hora sempre se comete um erro e é preciso arrepiar carreira, recorrendo ao ícone "voltar" até dar certo. No fundo, o mouse da história sou eu.
Num congestionamento em São Paulo, contudo, não há decisões a tomar. A materialidade de um meio obstruído, invencível, impõe-se pesadamente. O farol verde e o vermelho se alternam sem chance para cliques, exceto os de uma máquina fotográfica...
São imagens bonitas e estranhas. Algumas, tiradas à noite, mostram as lanternas do carro da frente como uma aparição monstruosa, deformada pelas gotas de chuva. Prefiro outras, quase sem cor: uma árvore do lado esquerdo, a rua vazia em frente ou uns galhos de salgueiro à direita ficaram granulados e cinzentos como numa gravura de Seurat.
Mas não é com a arte impressionista que se parece a maior parte das figuras. Uma foto de casas quase desfeitas pela água lembra os quadros de Munch ou de Vlaminck: cenário de terror ou, pelo menos, de fantasmagoria.
Sob uma chuva de meteoros brancos, não sei se a fachada é de um estacionamento ou de um cinema abandonado no centro da cidade, se há gente passando ou não. Outra imagem fala de um muro grafitado. É o que indica o título. Mas onde está? Sobre o muro cinzento, usaram tinta branca ou prateada. Os reflexos da chuva no vidro se confundem com duas ou três letras angulosas: fantasmas de um grafite.
Impliquei um pouco com a idéia de dar títulos em inglês à maioria das fotos: "Water Houses", "Far Avenue Building", "I Want to Go Home". Sem dúvida, essas imagens de São Paulo lembram a estética de "Blade Runner" e de outros filmes "cult" dos anos 80.
Era uma década em que o uso do inglês servia para dar distanciamento e frieza estética ao presente subdesenvolvido. Nesse sentido, o projeto de Tadeu Jungle parece "revisitar" um período que era, em si mesmo, caracterizado pelas "revisitações", pelos "revivals", por uma certa nostalgia desemocionada e irônica.
Chama a atenção, por exemplo, que as fotos de "Heavy Rain" imitem não apenas a pintura pontilhista ou expressionista mas também as produções do hiper-realismo, que justamente queriam imitar, na pintura, a... fotografia.
Contudo, se tomarmos como comparação a poesia das paisagens paulistanas de Gregório Gruber, por exemplo, veremos que um outro estilo, mais tenso, intervém nas fotos de Jungle. O lado "pintura" convive com sensações que lembram, por exemplo, as cenas de um filme como "O Invasor", de Beto Brant: as luzes dos semáforos e dos anúncios, agressivas, surgem numa tela "dura", a do computador, que não tem a suavidade do quadro.
As luzes e os contornos da cidade se deformam do mesmo modo que um som, uma buzinada, um grito ficariam distorcidos ao se propagarem na água. Esse meio líquido, a chuva, cobre o mundo de irrealidade.
O poeta Saint-John Perse disse que a chuva faz todas as coisas parecerem "o lado avesso de um sonho". Não há eufemismo, ocultamento, filtragem da realidade nas fotos de Tadeu Jungle, mas é como se houvesse, lá fora, um pesadelo de que tentamos nos proteger. Nada mais doméstico e sedentário do que a internet; "Heavy Rain" sugere outras paragens.


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