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CARLOS HEITOR CONY
Os caminhos do fanatismo
"Ter idéias é muito perigoso" -poderia dizer, acacianamente, o genial Guimarães
Rosa. Aliás, sempre foi perigoso
ter idéias, principalmente quando essas idéias não são as da
maioria. Foi o caso dos hippies
envolvidos, ali por volta dos anos
70 do século passado, no assassinato de cinco pessoas -sem contar o de outras duas que foram
mortas apenas para testar os nervos dos criminosos e atribular
ainda mais a já atribulada polícia de Los Angeles.
É quase um lugar-comum da
história descarregar nas minorias
certo tipo de crimes. Os cristãos
das catacumbas foram acusados
de comer criancinhas, num rito
místico-canibalesco que nada
mais era que o sacramento da eucaristia. Ao longo da Idade Média, os judeus também foram
acusados de práticas semelhantes
-e o Homem de Kiev, no feudalismo da Rússia pré-socialista,
transformou-se no mártir de um
preconceito que ceifou muitos filhos do povo de Israel. Sem querer
contrariar os fatos, é possível que
a degustação do bispo Sardinha,
atribuída aos nossos índios, também não passe de uma torpe acusação às minorias.
Mas, no caso de Los Angeles, a
coisa foi exagerada. Um grupo indeterminado, em número e em
propósitos, resolveu limpar a atmosfera em que vivemos livrando
essa mesma atmosfera de "porcos". Porcos, para essas pessoas,
não são bem os milionários, pois
os exterminados não eram nem
sequer ricos. Não trucidaram nenhum diretor da General Motors
ou da Standard Oil Company, nenhum big boss da sociedade capitalista. Mataram cidadãos que viviam e se divertiam bem. Para os
hippies daquele tempo, a classificação de "porco" era meio complicada. Todo aquele que contrariava o eu-plural não era confiável e, em alguns casos, nem era
digno de viver. Tanto faz matar
John, Dick ou Charles, que o eu-plural só tem a ganhar com isso.
A filosofia deles era bastante
confusa, mas assim mesmo encontrou adeptos, tal como o positivismo, a halterofilia, a filatelia,
a Legião da Boa Vontade e a dieta macrobiótica. Pode-se dizer
que tanto mais confusa a causa,
mais fanáticos se tornam os seus
adeptos.
No dia 8 de agosto de algum
ano da década de 70, algumas
pessoas estavam conversando numa casa em Beverly Hills quando
começaram a ser assassinadas
por desconhecidos -deles e da
polícia. Truman Capote descreveu o massacre a sangue-frio de
uma família inteira. Mas os criminosos do romance-reportagem
de Capote tinham aquilo que a
polícia costuma chamar de motivo: o dinheiro. No caso de Los Angeles, o problema, para a ótica policial, tornou-se complexo, pois
não havia motivo aparente ou
oculto por trás da chacina. A tradicional pergunta "a quem interessa o crime" não encontrava
resposta, apesar das muitas pesquisas e pistas.
Uma das pessoas assassinadas
era uma atriz, mulher de um cineasta polonês. Estava grávida de
oito meses - qualquer repórter
de polícia poderia dizer que ela
"se encontrava em adiantado estado de gestação", o que seria verdade. A hipótese de uma bacanal
regada a entorpecentes foi afastada. Ainda que, eventualmente,
algum dos assassinados fumasse
o seu baseado, não eram viciados
crônicos e, no momento do crime,
nem sequer haviam bebido álcool
em demasia.
A pista mais óbvia que a polícia
encontrou foi uma palavra escrita a sangue na porta principal da
casa onde ocorrera o massacre:
PORCOS. Assim mesmo, em caixa-alta. A acusação era genérica.
Porcos podiam ser os assassinados, os assassinos, a polícia, a imprensa, as classes conservadoras,
as igrejas, a sociedade enfim. Alguns suspeitos foram presos, e a
vida de cada um dos trucidados
sofreu minuciosa devassa.
Um tenente-coronel do Exército
norte-americano, de 46 anos, pai
de uma das vítimas, resolveu por
conta própria entrar no assunto.
Pediu licença a seus superiores,
deixou crescer a barba, vestiu
roupas extravagantes e, assim
fantasiado, começou a vagar pelos acampamentos onde iniciou
uma série de contatos com os rapazes que, em sinal de protesto
contra a sociedade, não tomavam
banho e adoravam flores e fluidos
balsâmicos. Não sabemos se o militar também deixou de tomar
banho, mas de contato em contato foi colhendo informações. Logo
adquiriu uma certeza: aqueles rapazes que queriam fazer o amor e
não a guerra sabiam de alguma
coisa a respeito da morte da filha.
A chacina de Los Angeles era citada eventualmente como uma
espécie de façanha, um ponto-limite definidor das possibilidades
do movimento. Muitos condenavam o massacre, mas a maioria
mantinha um prudente e brechtiano distanciamento do fato.
Afinal, aqueles rapazes queriam
protestar de forma pacífica contra o mundo, ver as cores mais
densas, e para isso tomavam drogas que fazem o azul do céu ser
mais azul, sem precisarem vir ao
Brasil, onde, como todos sabemos,
o azul do céu é mais azul.
Uma das grandes virtudes dos
hippies era gritante: eles não se escondiam. Pelo contrário, faziam
questão de se exibir. Não andavam disfarçados de bancários ou
de comerciários, pois o invólucro
deles é a própria agressão -o que
não deixa de ser a adaptação física de um lema famoso: "O veículo
é a mensagem". Não foi difícil encontrar uma adepta da seita que
logo contratou advogado, o que
contrariava a própria filosofia
hippie, que detestava advogados e
juízes, cúmplices que são da sociedade contra a qual protestavam.
Ao seu advogado, a moça de 21
anos, de feições compridas e trágicas, disse que presenciou o massacre e assinalou as armas e os varões que mais assinalados ficaram quando a polícia começou a
caçá-los um a um.
Por estranho que pareça, o líder
do grupo saneador não precisou
ser caçado, pois caçado estava: a
polícia já o havia encarcerado por
roubo de carros.
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