São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Os caminhos do fanatismo

"Ter idéias é muito perigoso" -poderia dizer, acacianamente, o genial Guimarães Rosa. Aliás, sempre foi perigoso ter idéias, principalmente quando essas idéias não são as da maioria. Foi o caso dos hippies envolvidos, ali por volta dos anos 70 do século passado, no assassinato de cinco pessoas -sem contar o de outras duas que foram mortas apenas para testar os nervos dos criminosos e atribular ainda mais a já atribulada polícia de Los Angeles.
É quase um lugar-comum da história descarregar nas minorias certo tipo de crimes. Os cristãos das catacumbas foram acusados de comer criancinhas, num rito místico-canibalesco que nada mais era que o sacramento da eucaristia. Ao longo da Idade Média, os judeus também foram acusados de práticas semelhantes -e o Homem de Kiev, no feudalismo da Rússia pré-socialista, transformou-se no mártir de um preconceito que ceifou muitos filhos do povo de Israel. Sem querer contrariar os fatos, é possível que a degustação do bispo Sardinha, atribuída aos nossos índios, também não passe de uma torpe acusação às minorias.
Mas, no caso de Los Angeles, a coisa foi exagerada. Um grupo indeterminado, em número e em propósitos, resolveu limpar a atmosfera em que vivemos livrando essa mesma atmosfera de "porcos". Porcos, para essas pessoas, não são bem os milionários, pois os exterminados não eram nem sequer ricos. Não trucidaram nenhum diretor da General Motors ou da Standard Oil Company, nenhum big boss da sociedade capitalista. Mataram cidadãos que viviam e se divertiam bem. Para os hippies daquele tempo, a classificação de "porco" era meio complicada. Todo aquele que contrariava o eu-plural não era confiável e, em alguns casos, nem era digno de viver. Tanto faz matar John, Dick ou Charles, que o eu-plural só tem a ganhar com isso.
A filosofia deles era bastante confusa, mas assim mesmo encontrou adeptos, tal como o positivismo, a halterofilia, a filatelia, a Legião da Boa Vontade e a dieta macrobiótica. Pode-se dizer que tanto mais confusa a causa, mais fanáticos se tornam os seus adeptos.
No dia 8 de agosto de algum ano da década de 70, algumas pessoas estavam conversando numa casa em Beverly Hills quando começaram a ser assassinadas por desconhecidos -deles e da polícia. Truman Capote descreveu o massacre a sangue-frio de uma família inteira. Mas os criminosos do romance-reportagem de Capote tinham aquilo que a polícia costuma chamar de motivo: o dinheiro. No caso de Los Angeles, o problema, para a ótica policial, tornou-se complexo, pois não havia motivo aparente ou oculto por trás da chacina. A tradicional pergunta "a quem interessa o crime" não encontrava resposta, apesar das muitas pesquisas e pistas.
Uma das pessoas assassinadas era uma atriz, mulher de um cineasta polonês. Estava grávida de oito meses - qualquer repórter de polícia poderia dizer que ela "se encontrava em adiantado estado de gestação", o que seria verdade. A hipótese de uma bacanal regada a entorpecentes foi afastada. Ainda que, eventualmente, algum dos assassinados fumasse o seu baseado, não eram viciados crônicos e, no momento do crime, nem sequer haviam bebido álcool em demasia.
A pista mais óbvia que a polícia encontrou foi uma palavra escrita a sangue na porta principal da casa onde ocorrera o massacre: PORCOS. Assim mesmo, em caixa-alta. A acusação era genérica. Porcos podiam ser os assassinados, os assassinos, a polícia, a imprensa, as classes conservadoras, as igrejas, a sociedade enfim. Alguns suspeitos foram presos, e a vida de cada um dos trucidados sofreu minuciosa devassa.
Um tenente-coronel do Exército norte-americano, de 46 anos, pai de uma das vítimas, resolveu por conta própria entrar no assunto. Pediu licença a seus superiores, deixou crescer a barba, vestiu roupas extravagantes e, assim fantasiado, começou a vagar pelos acampamentos onde iniciou uma série de contatos com os rapazes que, em sinal de protesto contra a sociedade, não tomavam banho e adoravam flores e fluidos balsâmicos. Não sabemos se o militar também deixou de tomar banho, mas de contato em contato foi colhendo informações. Logo adquiriu uma certeza: aqueles rapazes que queriam fazer o amor e não a guerra sabiam de alguma coisa a respeito da morte da filha.
A chacina de Los Angeles era citada eventualmente como uma espécie de façanha, um ponto-limite definidor das possibilidades do movimento. Muitos condenavam o massacre, mas a maioria mantinha um prudente e brechtiano distanciamento do fato. Afinal, aqueles rapazes queriam protestar de forma pacífica contra o mundo, ver as cores mais densas, e para isso tomavam drogas que fazem o azul do céu ser mais azul, sem precisarem vir ao Brasil, onde, como todos sabemos, o azul do céu é mais azul.
Uma das grandes virtudes dos hippies era gritante: eles não se escondiam. Pelo contrário, faziam questão de se exibir. Não andavam disfarçados de bancários ou de comerciários, pois o invólucro deles é a própria agressão -o que não deixa de ser a adaptação física de um lema famoso: "O veículo é a mensagem". Não foi difícil encontrar uma adepta da seita que logo contratou advogado, o que contrariava a própria filosofia hippie, que detestava advogados e juízes, cúmplices que são da sociedade contra a qual protestavam. Ao seu advogado, a moça de 21 anos, de feições compridas e trágicas, disse que presenciou o massacre e assinalou as armas e os varões que mais assinalados ficaram quando a polícia começou a caçá-los um a um.
Por estranho que pareça, o líder do grupo saneador não precisou ser caçado, pois caçado estava: a polícia já o havia encarcerado por roubo de carros.


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