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CARLOS HEITOR CONY
História da baleia cortada em duas
Desde que Pompeu pronunciou o ""Navegar é preciso", foram muitos os que, literalmente, embarcaram na pequena
frase que se tornou um lema
poético e existencial. E até mesmo operacional, tal como está
inscrito no escudo da Liga
Hanseática, ali no extremo
norte da Europa.
Em Lübeck, cidade natal de
Thomas Mann, o portão medieval que dá acesso à rua principal tem esse escudo gravado
na pedra já coberta de limo.
Nele se pode ler o apelo com o
qual Pompeu incentivou seus
marinheiros a enfrentar a procela que separava o trigo da
África da fome de Roma.
A bordo da mesmíssima frase,
Fernando Pessoa e até o finado
Ulysses Guimarães costumam
ser citados como pais da idéia
de que navegar é preciso, viver
não é preciso. Outro dia, assisti
na TV a um professor universitário atribuir a frase a Caetano
Veloso.
O mestre dava uma aula sobre o Descobrimento do Brasil
e fez assombrosa síntese. Daí
que fiquei em dúvida se Cabral
ou o grande Gama decidiram
navegar depois de ouvir Caetano. De qualquer forma, em nome desse navegar é preciso,
cheguei à conclusão de que o
melhor é tirar o meu time de
campo, ou melhor, meu barco
do mar. Viajo em seco -e viajo
bem.
Acho que é preciso viver, navegar fica por conta de circunstâncias. O povão que mora em
Niterói costuma navegar todos
os dias, e todos ali concordam
que viver é preciso. Navegam
por necessidade de tempo e economia de pecúnia.
Mesmo assim, nos últimos
anos aprendi a navegar não
exatamente entre Rio e Niterói,
mas pelo Mediterrâneo. Desdenho o Caribe, que é uma espécie de Disneylândia naval. Mas
é bom sair de Gênova, Nápoles
ou Veneza, visitar portos históricos como Marselha, Barcelona, Málaga, Cipre, Catânia,
Palermo, Pireu, Rodes, Creta,
Alexandria, Haifa, Sardenha
-o espaço seria pouco para
tanto mar.
Navegar no Mediterrâneo é
repetir o roteiro de Ulisses, não
o Guimarães acima citado,
mas o próprio, o personagem
criado por Homero. E não raras vezes o viajante, como o herói da "Odisséia", sente necessidade de se amarrar nos mastros para não cair nas águas
enfeitiçadas pelas sereias.
De saco pleno pelas travessias
aéreas, abagunçadas, longas,
um tempo perdido e sacrificado
ao espaço, sempre que posso
volto para casa de navio, chegando à praça Mauá de bermudas, pele tostada pelo sol, sem
problemas de fuso horário e de
excesso de bagagem. Perco 15
dias, mas ganho saúde e tempo
integral para ler. Se estou a fim,
tempo também para escrever.
Final do ano passado, tão logo o navio deixou o "mare nostrum" dos romanos e enfrentou
o Atlântico, subitamente as
máquinas pararam. Foi um
respeitável tranco. Eu estava
com o notebook no colo, caprichando uma cena meio escabrosa entre uma candidata a
lésbica e um candidato a corno,
uma espécie de conto que me
fora encomendado e que terminou se transformando num romance impublicável.
O notebook foi para o chão,
milagrosamente não quebrou,
apenas encerrou a cena antes
que ela encerrasse definitivamente o nível de bom gosto que
deveria manter. Mudei o rumo
da história depois desse tranco.
Foi então que o comandante
anunciou em diversas línguas
que uma baleia ficara presa no
casco. Não detectada pelo radar de bordo, ela foi arrastada.
Ficou presa naquela parte do
casco que faz uma vírgula de
ferro, bem embaixo da proa.
Se em vez de uma baleia, um
alvo móvel, fosse um iceberg,
eu talvez não estivesse aqui escrevendo essas mal traçadas.
Mas o navio não podia enfrentar o Atlântico com aquele mamífero travando a sua marcha.
O esforço para arrastar o mamífero arrebentaria os motores.
(Insisto no ""mamífero" porque é o pouco que sei a respeito
das baleias: elas são mamíferos. São cetáceos, também, mas
gosto mais do mamífero, sei do
que se trata, eu próprio sou um
mamífero, embora em menores
proporções. Não me considero
um cetáceo, apesar de haver
gente que assim me considera.)
Mergulhadores da tripulação
desceram num bote inflável e
serraram a baleia pelo meio.
Não me dei ao respeito de ver o
esfacelamento do monstro.
Uma mocinha da tripulação,
que estava de folga e descansava na proa, me garantiu que a
baleia chorou como choram os
porcos na hora da faca.
Dois formidáveis pedaços do
mamífero foram para o fundo
do mar. Logo o navio recomeçou a sua marcha. Não mais sobre um leito de espumas brancas, mas de espumas avermelhadas por duas toneladas de
sangue. Mais uma vez me convenci de que navegar não é preciso.
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