São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
História da baleia cortada em duas

Desde que Pompeu pronunciou o ""Navegar é preciso", foram muitos os que, literalmente, embarcaram na pequena frase que se tornou um lema poético e existencial. E até mesmo operacional, tal como está inscrito no escudo da Liga Hanseática, ali no extremo norte da Europa.
Em Lübeck, cidade natal de Thomas Mann, o portão medieval que dá acesso à rua principal tem esse escudo gravado na pedra já coberta de limo. Nele se pode ler o apelo com o qual Pompeu incentivou seus marinheiros a enfrentar a procela que separava o trigo da África da fome de Roma.
A bordo da mesmíssima frase, Fernando Pessoa e até o finado Ulysses Guimarães costumam ser citados como pais da idéia de que navegar é preciso, viver não é preciso. Outro dia, assisti na TV a um professor universitário atribuir a frase a Caetano Veloso.
O mestre dava uma aula sobre o Descobrimento do Brasil e fez assombrosa síntese. Daí que fiquei em dúvida se Cabral ou o grande Gama decidiram navegar depois de ouvir Caetano. De qualquer forma, em nome desse navegar é preciso, cheguei à conclusão de que o melhor é tirar o meu time de campo, ou melhor, meu barco do mar. Viajo em seco -e viajo bem.
Acho que é preciso viver, navegar fica por conta de circunstâncias. O povão que mora em Niterói costuma navegar todos os dias, e todos ali concordam que viver é preciso. Navegam por necessidade de tempo e economia de pecúnia.
Mesmo assim, nos últimos anos aprendi a navegar não exatamente entre Rio e Niterói, mas pelo Mediterrâneo. Desdenho o Caribe, que é uma espécie de Disneylândia naval. Mas é bom sair de Gênova, Nápoles ou Veneza, visitar portos históricos como Marselha, Barcelona, Málaga, Cipre, Catânia, Palermo, Pireu, Rodes, Creta, Alexandria, Haifa, Sardenha -o espaço seria pouco para tanto mar.
Navegar no Mediterrâneo é repetir o roteiro de Ulisses, não o Guimarães acima citado, mas o próprio, o personagem criado por Homero. E não raras vezes o viajante, como o herói da "Odisséia", sente necessidade de se amarrar nos mastros para não cair nas águas enfeitiçadas pelas sereias.
De saco pleno pelas travessias aéreas, abagunçadas, longas, um tempo perdido e sacrificado ao espaço, sempre que posso volto para casa de navio, chegando à praça Mauá de bermudas, pele tostada pelo sol, sem problemas de fuso horário e de excesso de bagagem. Perco 15 dias, mas ganho saúde e tempo integral para ler. Se estou a fim, tempo também para escrever.
Final do ano passado, tão logo o navio deixou o "mare nostrum" dos romanos e enfrentou o Atlântico, subitamente as máquinas pararam. Foi um respeitável tranco. Eu estava com o notebook no colo, caprichando uma cena meio escabrosa entre uma candidata a lésbica e um candidato a corno, uma espécie de conto que me fora encomendado e que terminou se transformando num romance impublicável.
O notebook foi para o chão, milagrosamente não quebrou, apenas encerrou a cena antes que ela encerrasse definitivamente o nível de bom gosto que deveria manter. Mudei o rumo da história depois desse tranco.
Foi então que o comandante anunciou em diversas línguas que uma baleia ficara presa no casco. Não detectada pelo radar de bordo, ela foi arrastada. Ficou presa naquela parte do casco que faz uma vírgula de ferro, bem embaixo da proa.
Se em vez de uma baleia, um alvo móvel, fosse um iceberg, eu talvez não estivesse aqui escrevendo essas mal traçadas. Mas o navio não podia enfrentar o Atlântico com aquele mamífero travando a sua marcha. O esforço para arrastar o mamífero arrebentaria os motores.
(Insisto no ""mamífero" porque é o pouco que sei a respeito das baleias: elas são mamíferos. São cetáceos, também, mas gosto mais do mamífero, sei do que se trata, eu próprio sou um mamífero, embora em menores proporções. Não me considero um cetáceo, apesar de haver gente que assim me considera.)
Mergulhadores da tripulação desceram num bote inflável e serraram a baleia pelo meio. Não me dei ao respeito de ver o esfacelamento do monstro. Uma mocinha da tripulação, que estava de folga e descansava na proa, me garantiu que a baleia chorou como choram os porcos na hora da faca.
Dois formidáveis pedaços do mamífero foram para o fundo do mar. Logo o navio recomeçou a sua marcha. Não mais sobre um leito de espumas brancas, mas de espumas avermelhadas por duas toneladas de sangue. Mais uma vez me convenci de que navegar não é preciso.


Texto Anterior: Vida Bandida - Voltaire de Souza: Martírio
Próximo Texto: Televisão - José Simão: Páscoa da Telefônica! Não OVO nada!
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.