São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
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Cidade perde seu autor


IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
especial para a Folha

Batia ponto, pontual. Meio-dia do sábado, e quem chegava às mesas da Livraria Cultura já encontrava Marcos Rey com o chopinho. As mesas dos sábados são aquelas de bar, de ferro e lata. Incômodas. Mas quem se importava com comodidade? O que vale é a fraternidade que se estabelece.
Marcos Rey tinha problemas físicos, mas jamais se queixou das cadeiras. O que interessava a ele era o bate-papo, muitas vezes indignado contra a política cultural, a canalhice da televisão, a indigência dos programas dirigidos às crianças, a sacanagem de alguns críticos, as igrejinhas literárias. Quem conseguiu um programa para crianças melhor do que as adaptações que ele fez de ""O Sítio do Picapau Amarelo"? O programa ficou na cabeça (e no coração) de gerações.
Em geral, os papos eram muito bem-humorados. As mesas da Cultura foram a última tribuna de Marcos. Ali foram nossos últimos encontros. Ali ele desabafava, ria, divertia-se, trocava idéias. Marcos sempre foi um dos poucos autores que nunca vi chateando os outros a contar o livro escrevia, a remoer suas idéias, a se autovangloriar.
Seu trabalho sempre foi em casa, silencioso. Nunca o vi em viagens ao redor do próprio umbigo, nem chamar a atenção para uma crítica elogiosa. Nunca o vi pichar um companheiro-escritor. Se tinha restrições, fazia muxoxo. Se a questão era quanto ao caráter, preferia desviar o assunto. Era decente, tinha ética. Nunca o vi reclamar porque a crítica não o colocava à altura, como um dos autores que melhor viram São Paulo, melhor a compreenderam e fizeram dela uma personagem. Um autor que praticou esplendidamente a literatura de entretenimento.
Claro que ele se enraivecia. Principalmente contra a mediocridade que predomina na mídia, contra literatos de ocasião, contra arrogantes e oportunistas que adoram listas de best sellers em lugar de textos bem escritos. Ficava particularmente aborrecido com certos colégios que o convidavam para palestras sem querer pagar os cachês, dizendo que estavam fazendo propaganda de seus livros.
Marcos era um profissional e, como tal, deveria ser pago por um trabalho. Quantos sabem que ele tinha um enorme público juvenil? Estive com ele em escolas e mordia-me de inveja de ver o tanto de perguntas a ele dirigidas por jovens que tinham lido seus livros, conheciam seus personagens e questionavam fundo.
Certa vez, em Passo Fundo (RS), numa das Jornadas Brasileiras de Literatura, estive na mesa em que Marcos defrontou-se com 3.500 estudantes e professoras por três horas de perguntas, perguntas.
Ele tinha um público fiel, coisa que poucos escritores brasileiros podem se gabar de ter. Lembro-me da tarde no Rio Grande, quando ao seu lado estava Palma, doce figura que o acompanhou. Mulher bonita, inteligente, que jamais disputou, concorreu, que convivia compartilhando. Uma coisa que nós, escritores, amigos do Marcos, invejávamos era a cumplicidade, a ternura, que emanava do casal.
Mas uma coisa me veio. Trinta e cinco anos atrás, escrevi um romance muito ruim. Meu primeiro romance. Eu conhecia Marcos Rey das noitadas do Clubinho dos Artistas, um ponto de encontro dos boêmios, dos artistas, jornalistas, cantores. Marcos sempre foi um homem da noite, por isso a descreveu tão bem. Seus personagens nunca foram inventados, eram recortados das vivências. Para recortar é preciso ter um bom estilete, a mão segura, a mente clara.
Aquele meu romance ("Cravo sobre Gin Seco") foi entregue a Marcos, uma noite, no Clubinho. Pensar que fui um desses chatos: "Por favor, leia meu livro". Ele leu. E, por sorte minha, desancou. Porque era uma porcaria. Joguei fora. Ou seja, ele tinha coragem de dizer a verdade num meio em que se dizem mentiras, falsidades. Não passou a mão em minha cabeça. Simplesmente me devolveu o original, dizendo: "É ruim, você não está pronto, precisa viver um pouco, aprender a escrever romances".
Não sei se aprendi a escrever romances, mas recebi uma lição de honestidade. Recusar meu livro foi me dar carinho, acreditar em mim. Não acreditasse, teria dito: "É uma maravilha". Teria mentido. E uma coisa que jamais vi o Marcos fazer foi mentir. Ele vai fazer falta. Seus leitores vão precisar dele. E aqueles jovens que o adoram vão ficar órfãos. São Paulo perde um escritor que a retrata com sinceridade, ternura, mesmo contando as coisas feias. Ele amava a cidade, a literatura. Viveu dela, para ela.


Ignácio de Loyola Brandão, 62, é escritor, jornalista e diretor de Redação da revista "Vogue". Seu último livro publicado é "Veia Bailarina".


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