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Cidade perde seu autor
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
especial para a Folha
Batia ponto, pontual. Meio-dia
do sábado, e quem chegava às mesas da Livraria Cultura já encontrava Marcos Rey com o chopinho.
As mesas dos sábados são aquelas
de bar, de ferro e lata. Incômodas.
Mas quem se importava com comodidade? O que vale é a fraternidade que se estabelece.
Marcos Rey tinha problemas físicos, mas jamais se queixou das cadeiras. O que interessava a ele era o
bate-papo, muitas vezes indignado
contra a política cultural, a canalhice da televisão, a indigência dos
programas dirigidos às crianças, a
sacanagem de alguns críticos, as
igrejinhas literárias. Quem conseguiu um programa para crianças
melhor do que as adaptações que
ele fez de ""O Sítio do Picapau Amarelo"? O programa ficou na cabeça
(e no coração) de gerações.
Em geral, os papos eram muito
bem-humorados. As mesas da
Cultura foram a última tribuna de
Marcos. Ali foram nossos últimos
encontros. Ali ele desabafava, ria,
divertia-se, trocava idéias. Marcos
sempre foi um dos poucos autores
que nunca vi chateando os outros a
contar o livro escrevia, a remoer
suas idéias, a se autovangloriar.
Seu trabalho sempre foi em casa,
silencioso. Nunca o vi em viagens
ao redor do próprio umbigo, nem
chamar a atenção para uma crítica
elogiosa. Nunca o vi pichar um
companheiro-escritor. Se tinha
restrições, fazia muxoxo. Se a
questão era quanto ao caráter, preferia desviar o assunto. Era decente, tinha ética. Nunca o vi reclamar
porque a crítica não o colocava à
altura, como um dos autores que
melhor viram São Paulo, melhor a
compreenderam e fizeram dela
uma personagem. Um autor que
praticou esplendidamente a literatura de entretenimento.
Claro que ele se enraivecia. Principalmente contra a mediocridade
que predomina na mídia, contra literatos de ocasião, contra arrogantes e oportunistas que adoram listas de best sellers em lugar de textos bem escritos. Ficava particularmente aborrecido com certos colégios que o convidavam para palestras sem querer pagar os cachês,
dizendo que estavam fazendo propaganda de seus livros.
Marcos era um profissional e, como tal, deveria ser pago por um
trabalho. Quantos sabem que ele
tinha um enorme público juvenil?
Estive com ele em escolas e mordia-me de inveja de ver o tanto de
perguntas a ele dirigidas por jovens que tinham lido seus livros,
conheciam seus personagens e
questionavam fundo.
Certa vez, em Passo Fundo (RS),
numa das Jornadas Brasileiras de
Literatura, estive na mesa em que
Marcos defrontou-se com 3.500
estudantes e professoras por três
horas de perguntas, perguntas.
Ele tinha um público fiel, coisa
que poucos escritores brasileiros
podem se gabar de ter. Lembro-me
da tarde no Rio Grande, quando ao
seu lado estava Palma, doce figura
que o acompanhou. Mulher bonita, inteligente, que jamais disputou, concorreu, que convivia compartilhando. Uma coisa que nós,
escritores, amigos do Marcos, invejávamos era a cumplicidade, a
ternura, que emanava do casal.
Mas uma coisa me veio. Trinta e
cinco anos atrás, escrevi um romance muito ruim. Meu primeiro
romance. Eu conhecia Marcos Rey
das noitadas do Clubinho dos Artistas, um ponto de encontro dos
boêmios, dos artistas, jornalistas,
cantores. Marcos sempre foi um
homem da noite, por isso a descreveu tão bem. Seus personagens
nunca foram inventados, eram recortados das vivências. Para recortar é preciso ter um bom estilete, a
mão segura, a mente clara.
Aquele meu romance ("Cravo
sobre Gin Seco") foi entregue a
Marcos, uma noite, no Clubinho.
Pensar que fui um desses chatos:
"Por favor, leia meu livro". Ele leu.
E, por sorte minha, desancou. Porque era uma porcaria. Joguei fora.
Ou seja, ele tinha coragem de dizer
a verdade num meio em que se dizem mentiras, falsidades. Não passou a mão em minha cabeça. Simplesmente me devolveu o original,
dizendo: "É ruim, você não está
pronto, precisa viver um pouco,
aprender a escrever romances".
Não sei se aprendi a escrever romances, mas recebi uma lição de
honestidade. Recusar meu livro foi
me dar carinho, acreditar em mim.
Não acreditasse, teria dito: "É uma
maravilha". Teria mentido. E uma
coisa que jamais vi o Marcos fazer
foi mentir. Ele vai fazer falta. Seus
leitores vão precisar dele. E aqueles
jovens que o adoram vão ficar órfãos. São Paulo perde um escritor
que a retrata com sinceridade, ternura, mesmo contando as coisas
feias. Ele amava a cidade, a literatura. Viveu dela, para ela.
Ignácio de Loyola Brandão, 62, é escritor, jornalista e diretor de Redação da revista "Vogue".
Seu último livro publicado é "Veia Bailarina".
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