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CRÍTICA
"Bestas Encurraladas" não admite metáforas
especial para a Folha
"Metáfora, s., f., tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico
que não é o do objeto que ela designa e que se fundamenta numa
relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado", diz o Aurélio.
Todo escritor é viciado em metáforas. Parece que, para ser bom
escritor, deve jogar com as palavras, emprestando a elas um outro sentido.
Por que todo escritor é viciado
em metáforas? Porque é um modo de explorar as possibilidades
do intrincado jogo com as palavras, essência da literatura. E porque é um modo de se diferenciar
do texto comum e deixar mensagens imortais, exibir habilidades.
Escritores são exibidinhos.
Espera lá. Nem todo escritor é fã
de metáforas. "Bestas Encurraladas", de Magnus Mills, é uma narrativa desesperadamente sem
metáforas, nem uminha. E mais.
Os verbos que descrevem as ações
são "ser", "estar" e "ter". E só. Nada de grandes construções semânticas.
Quase não há conflito. O livro é
narrado por um construtor de
cercas, sobre construtores de cercas, que enfiam estacas, puxam
arames, como obedientes cordeiros. Eles estão sempre duros e, no
fim do dia, vão beber chope no
bar mais perto e, com sorte, arrumam briga e mulher.
Ler Mills requer paciência. Nas
primeiras 30 páginas, não acontece absolutamente nada. A reação
é querer jogar o livro pela janela.
O narrador sem nome é escolhido o novo mestre-de-obras de
uma firma escocesa, que constrói
alambrados.
A primeira missão é refazer a
cerca de um fazendeiro escocês,
McCrindle, com os empregados
Tam e Richie, que não está na tensão encomendada.
Já nos primeiros diálogos percebe-se que nenhum personagem
está muito a fim de divagar sobre
qualquer assunto. "Está tudo certo com vocês?", pergunta o narrador a um de seus assistentes.
"Tem que estar, não é?", é a resposta. "Acho que sim", conclui. E
ponto, parágrafo.
Quando o leitor está para encostar o livro, na página 33, um arame muito esticado escapa das
mãos de Tam, a corrente atinge a
cabeça de McCrindle, matando-o.
Depois de um grande silêncio, um
dos empregados pergunta o que
fazer. "Bom, acho melhor enterrá-lo", responde o narrador.
Eles enterram o sujeito na hora,
deixando o seu boné na cabeça,
com a maior naturalidade, como
se fosse uma rotina. Terminam a
cerca, vão embora e não se fala
mais nisso. É quando o leitor pensa: "Ôps, aqui tem coisa...".
"Bestas" é diferente de tudo o
que você já leu. A economia de
palavras, a estupidez dos personagens, o gesto banal virando literatura pouco a pouco ganham
formas de grande arte. O susto
que o leitor tem ao ler algo que
aparentemente não fala sobre nada, mas que por isso é único, é repartido pelos críticos.
Para Anthony Bourdain, crítico
do "The New York Times", o livro
de Mills lembra o filme "Barton
Fink", dos irmãos Coen. Para
Kim Newman, do "The Independent", o livro fica entre Kafka e
Ken Loach.
Tom Gogola, do "Newsday", faz
uma comparação curiosa. O livro
de Mills até pode lembrar o de um
conterrâneo seu, Irvine Welsh
("Trainspotting"). Mas, enquanto
os personagens de "Trainspotting" ouvem Bush e lutam para
parecerem "cool", os de Mills ouvem Iron Maiden e não ligam para nada, divaga.
Além de Maiden, eles ouvem
Black Sabbath, Motorhead e Saxon. Vão para a Inglaterra, para
construir outro alambrado. Já
acham o pub mais perto, na primeira noite. Dormem os três no
trailer da firma. Richie acha um livro velho, "An Early Bath for
Thompson", e começa a lê-lo.
Passa um tempo, o narrador pergunta como é o livro. "Não sei,
ainda não terminei", responde.
Os três acabam ganhando a inimizade de construtores locais,
mais mortes acontecem e, no final... Ninguém jamais conseguirá
adivinhar o que acontece no final.
O título do livro sugere que esses três trabalhadores são bestas
enjauladas, ou foram bestificados
pela monotonia e vazio do trabalho braçal, ou que são feras adormecidas e encurraladas por jaulas
construídas na base da estratificação social. E a maior ironia é que
são eles, as bestas enjauladas, que
levantam cercas e alambrados.
Mills não se parece com Kafka,
com Welsh, com nada que você já
leu. E o mais surpreendente de tudo é que os personagens de Mills
se parecem com diversas pessoas
que você já viu. Mills deu forma a
um mundo sem glória, sem heróis, sem conquistas, sem opções.
Exatamente o mundo sem metáforas em que vive a maioria que
está do lado de fora de sua janela,
neste momento.
(MRP)
Avaliação:
Livro: Bestas Encurraladas (The
Restraint of Beasts)
Autor: Magnus Mills
Tradutor: Lidia Cavalcante Luther
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 22 (190 págs.)
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