São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2000


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CRÍTICA
"Bestas Encurraladas" não admite metáforas

especial para a Folha

"Metáfora, s., f., tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa e que se fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado", diz o Aurélio.
Todo escritor é viciado em metáforas. Parece que, para ser bom escritor, deve jogar com as palavras, emprestando a elas um outro sentido.
Por que todo escritor é viciado em metáforas? Porque é um modo de explorar as possibilidades do intrincado jogo com as palavras, essência da literatura. E porque é um modo de se diferenciar do texto comum e deixar mensagens imortais, exibir habilidades. Escritores são exibidinhos.
Espera lá. Nem todo escritor é fã de metáforas. "Bestas Encurraladas", de Magnus Mills, é uma narrativa desesperadamente sem metáforas, nem uminha. E mais. Os verbos que descrevem as ações são "ser", "estar" e "ter". E só. Nada de grandes construções semânticas.
Quase não há conflito. O livro é narrado por um construtor de cercas, sobre construtores de cercas, que enfiam estacas, puxam arames, como obedientes cordeiros. Eles estão sempre duros e, no fim do dia, vão beber chope no bar mais perto e, com sorte, arrumam briga e mulher.
Ler Mills requer paciência. Nas primeiras 30 páginas, não acontece absolutamente nada. A reação é querer jogar o livro pela janela.
O narrador sem nome é escolhido o novo mestre-de-obras de uma firma escocesa, que constrói alambrados.
A primeira missão é refazer a cerca de um fazendeiro escocês, McCrindle, com os empregados Tam e Richie, que não está na tensão encomendada.
Já nos primeiros diálogos percebe-se que nenhum personagem está muito a fim de divagar sobre qualquer assunto. "Está tudo certo com vocês?", pergunta o narrador a um de seus assistentes. "Tem que estar, não é?", é a resposta. "Acho que sim", conclui. E ponto, parágrafo.
Quando o leitor está para encostar o livro, na página 33, um arame muito esticado escapa das mãos de Tam, a corrente atinge a cabeça de McCrindle, matando-o. Depois de um grande silêncio, um dos empregados pergunta o que fazer. "Bom, acho melhor enterrá-lo", responde o narrador.
Eles enterram o sujeito na hora, deixando o seu boné na cabeça, com a maior naturalidade, como se fosse uma rotina. Terminam a cerca, vão embora e não se fala mais nisso. É quando o leitor pensa: "Ôps, aqui tem coisa...".
"Bestas" é diferente de tudo o que você já leu. A economia de palavras, a estupidez dos personagens, o gesto banal virando literatura pouco a pouco ganham formas de grande arte. O susto que o leitor tem ao ler algo que aparentemente não fala sobre nada, mas que por isso é único, é repartido pelos críticos.
Para Anthony Bourdain, crítico do "The New York Times", o livro de Mills lembra o filme "Barton Fink", dos irmãos Coen. Para Kim Newman, do "The Independent", o livro fica entre Kafka e Ken Loach.
Tom Gogola, do "Newsday", faz uma comparação curiosa. O livro de Mills até pode lembrar o de um conterrâneo seu, Irvine Welsh ("Trainspotting"). Mas, enquanto os personagens de "Trainspotting" ouvem Bush e lutam para parecerem "cool", os de Mills ouvem Iron Maiden e não ligam para nada, divaga.
Além de Maiden, eles ouvem Black Sabbath, Motorhead e Saxon. Vão para a Inglaterra, para construir outro alambrado. Já acham o pub mais perto, na primeira noite. Dormem os três no trailer da firma. Richie acha um livro velho, "An Early Bath for Thompson", e começa a lê-lo. Passa um tempo, o narrador pergunta como é o livro. "Não sei, ainda não terminei", responde.
Os três acabam ganhando a inimizade de construtores locais, mais mortes acontecem e, no final... Ninguém jamais conseguirá adivinhar o que acontece no final.
O título do livro sugere que esses três trabalhadores são bestas enjauladas, ou foram bestificados pela monotonia e vazio do trabalho braçal, ou que são feras adormecidas e encurraladas por jaulas construídas na base da estratificação social. E a maior ironia é que são eles, as bestas enjauladas, que levantam cercas e alambrados.
Mills não se parece com Kafka, com Welsh, com nada que você já leu. E o mais surpreendente de tudo é que os personagens de Mills se parecem com diversas pessoas que você já viu. Mills deu forma a um mundo sem glória, sem heróis, sem conquistas, sem opções. Exatamente o mundo sem metáforas em que vive a maioria que está do lado de fora de sua janela, neste momento. (MRP)


Avaliação:     


Livro: Bestas Encurraladas (The Restraint of Beasts)
Autor: Magnus Mills
Tradutor: Lidia Cavalcante Luther
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 22 (190 págs.)


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