São Paulo, terça-feira, 02 de maio de 2000


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Biografia tropeça, mas mostra genialidade do excêntrico Glenn Gould

IRINEU FRANCO PERPÉTUO
especial para a Folha

"Gênio e excêntrico" é o mais batido dos chavões, mas é também a primeira expressão que vem à mente quando o assunto é o pianista canadense Glenn Gould, não constituindo acaso, portanto, que o filme de François Girard a seu respeito, "Thirty-Two Short Films about Glenn Gould", tenha sido intitulado, em português, "O Gênio e Excêntrico Glenn Gould em 32 Curtas". Graças à editora Record chega ao mercado editorial brasileiro nesta Bienal do Livro, com 11 anos de atraso, "Glenn Gould: Uma Vida e Variações", biografia oficial do artista, escrita pelo jornalista norte-americano Otto Friedrich (1920-1995). Ao lançar em português um livro originalmente lançado em 1989, a Record bem que poderia ter tomado algumas providências de atualização. Algumas gravações que constam da discografia como "inéditas" já existem no mercado, como o disco em que o canadense toca e rege o "Idílio de Siegfried", de Wagner. Gould viveu apenas meio século (1932-1982), mas marcou a história do teclado quando, em 1964, resolveu abandonar as apresentações em público, preferindo dedicar-se a gravações, produção de programas de rádio e televisão (nos quais tinha o hábito de se auto-entrevistar) e uma escassa atividade de composição. Largar os palcos sem mais nem menos (uma decisão economicamente arriscada, mas que não se mostrou totalmente equivocada: sem receber cachês de concertos nos últimos 28 anos de sua vida, Gould faleceu com um patrimônio avaliado em US$ 750 mil) foi visto como mais uma loucura de um cara que nunca tinha parecido muito normal. Durante os concertos, era conhecido por uma série de tiques, como reger a si mesmo, cantarolar em voz alta e cruzar as pernas. Fora da ribalta, também tiveram fama sua misantropia, medo de avião, hábito de falar ao telefone durante horas na madrugada e hipocondria (vivia à base de Valium, e, independentemente do clima que fizesse, trajava chapéu, sobretudo de lã, cachecol e luvas). Musicalmente, também era controverso. Fanático pelas técnicas de gravação, tinha uma relação ambígua e subjetiva para com o texto musical, que não se importava em subverter. Não apreciava o centro do repertório dos pianistas tradicionais (o romantismo de Chopin, Liszt e Schumann), preferindo o barroco de Bach e a Segunda Escola de Viena, de Berg e Schoenberg. Gravou compositores por cuja música não escondia a aversão (como Mozart, do qual registrou a integral das sonatas para piano). Apaixonado por polifonia, deixou como marca registrada as "Variações Goldberg", de Bach, que gravou duas vezes. Curiosamente, em seu primeiro e último disco. Material rico e com potencial para cativar até quem nunca ouviu um piano na vida. Entretanto, a magia atingida por Girard em seu filme está infelizmente distante do texto de Friedrich. Em parte, a culpa é de uma tradução meio descuidada, que chama, por exemplo, o "Concerto nº 4" de Beethoven de "Quarta"; atribui a este compositor uma certa "Sonata Berg" (na verdade, a "Sonata nº 1", de Alban Berg); designa os "poemas sinfônicos" de Richard Strauss como "poemas de tons"; e chama de "terceira" o intervalo musical mais conhecido como "terça". De qualquer forma, o texto do autor, que teve acesso exclusivo ao espólio de Glenn Gould, não chega a ser dos mais fluentes. E detalhes que poderiam ser saborosos na mão de outro biógrafo (aprendemos que o pianista quase não tinha paladar, e era fã de Barbra Streisand) acabam ganhando caráter de enumeração quase burocrática. Mais grave: a análise de Glenn Gould enquanto pianista é das mais superficiais. Sexualidade? Ponto controverso. Sem dar nomes, Friedrich fala de um obscuro caso do pianista com "a mulher de um músico bastante proeminente", embora não chegue a desmentir os rumores de sua homossexualidade. Por outro lado, o livro tem uma riqueza de informações difícil de ser batida. Constam dele, por exemplo, os programas de todos os concertos dados por Glenn Gould, bem como uma meticulosa discografia e a relação de todos seus textos publicados, e dos programas de rádio e televisão em que atuou. Conclusão: pouco atraente para o leigo, a biografia ganha, pelo aspecto documental, importância fundamental para o profissional da música.


Avaliação:   


Livro: Glenn Gould: Uma Vida e Variações (Glenn Gould: A Life and Variations)
Autor: Otto Friedrich
Editora: Record
Quanto: R$ 45 (456 págs.)


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