São Paulo, quarta-feira, 02 de maio de 2001

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MARCELO COELHO

Ironia salva livro de adolescente dos clichês

O que pensam, o que sentem, o que fazem os adolescentes dos grandes centros urbanos brasileiros nos dias de hoje? Não sei direito. A pergunta, assim formulada, soa um pouco brega para mim. Parece associada a uma fraseologia bem desagradável, no estilo das mesas-redondas: "Dilemas da Adolescência num Mundo Globalizado", "A Problemática do Adolescente: Rumos e Perspectivas" etc.
Claro que essa "problemática" existe, mas tratar do assunto com esse vocabulário já é um convite ao clichê. Surge imediatamente a necessidade de falar das drogas, da falta de perspectivas, do consumismo, da alienação dos "jovens de hoje". Ainda que verdadeiro, o discurso é previsível -e logo assume um tom acusatório e externo ao seu objeto.
No que tange ao mau gosto literário, há contudo uma coisa mais arriscada do que adultos falando da "problemática" dos adolescentes. É quando os próprios adolescentes se encarregam de falar a sério sobre si mesmos: difícil que não reproduzam justamente os clichês usados pelos adultos.
Nascida em 1983, a carioca Simone Campos acaba de publicar seu primeiro romance, "No Shopping", pela editora 7 Letras. É uma excelente surpresa. A autora não cai na armadilha da "problemática da adolescência" e dos "testemunhos" sobre a própria geração.
Claro que seu assunto é esse mesmo: o cotidiano de adolescentes de classe média alta, que passam o dia no shopping center. Consumismo, drogas, desencontros amorosos, há tudo isso na história. O que torna o livro especialmente interessante -e atesta sua qualidade literária- é que os aspectos mais previsíveis do seu tema são como que recalcados, reprimidos. A autora faz questão de não colocá-los em primeiro plano.
"Esta história será contada como me foi contada. Por essa menina. A memória jovem dela confunde os fatos. Prometo que às vezes eles vão soar confusos e dispersos." Assim começa o livro, e, no paradoxo dessa última frase -"prometo que os fatos vão soar confusos e dispersos"-, já podemos ter idéia do tipo de aposta literária em que a autora vai se engajar.
De um lado, podemos entender a "promessa" como uma ironia: "Prometo que vou escrever de modo a decepcionar você, leitor". De outro, a maneira mais natural de corresponder à "psicologia do adolescente" seria narrar os fatos de modo "confuso e disperso" -e, nesse sentido, a promessa pode ser entendida sem ironia: o leitor terá, com efeito, aquilo que esperava encontrar num romance sobre adolescentes.
Esse jogo duplo parece orientar o livro inteiro e torna complicada a tarefa do resenhista. Pois nada seria mais fácil do que identificar, em cada página, a confirmação de tudo o que "se sabe" sobre os adolescentes.
A tentação seria citar, sem maiores comentários, a frase da personagem Delia, que, passeando entre as vitrinas, declara: "Eu amo esse shopping (...). Amo mais que tudo". Pronto: teríamos aí o retrato de uma juventude alienada e consumista etc etc.
Mas, nessa ordem de considerações, não há nada que os próprios personagens de "No Shopping" não estejam fartos de saber. Delia pode muito bem amar o shopping "mais que tudo", mas não afirma isso em estado de inocência, como se fosse uma vítima do espírito de nosso tempo.
Ela trabalha numa livraria do shopping. Por puro sarcasmo, mimetiza o marketing convencional de uma vendedora de livros. Aponta para um best-seller e diz para o namorado: "Toda essa gente maravilhosa que habita aqui dentro pode ser sua. Você pode ter a vida delas por 23,50".
Está cansada de saber que as promessas da publicidade e as belezas do shopping são uma total tolice. Mas sabe também que denunciar essa tolice não passa de outro clichê.
O romance inteiro, organizado em pequenos tópicos numerados (3.0, 3.1, 3.2, por exemplo), parece constituir-se numa fuga, numa recusa sistemática a qualquer clichê -mesmo que seja um clichê verdadeiro. "Nos anos 80 eu era pequena e os shoppings eram armadilhas sem bancos pra sentar a gente andava como camelos gordos escravos do consumo agora não é mais assim o jornal disse" -a frase da narradora se interrompe sem pontuação, como que imitando um automatismo mental a ser, em seguida, substituído por outro.
No momento em que um garoto se apaixona por Delia, tudo será feito para que o previsível, o ridículo dessa situação seja denunciado também: "Agora ele havia sido infectado. Delia assistia deliciada, sem se abster. As suas unhas, a sua pele, o seu jeito de ser era tudo o que ele queria. Ela se sentia muito em casa, bem-acompanhada".
É talvez por esse senso de pudor, de ironia -e não pelo que possa conter a respeito de drogas, de alienação ou de dilemas adolescentes-, que o livro de Simone Campos acabe sendo, de fato, aquilo que se espera dele: o "testemunho de uma geração". Mas num sentido muito preciso.
É como se os adolescentes de hoje (lá vou eu caindo nessa fraseologia) tivessem plena consciência de todo o absurdo que há num shopping e, ao mesmo tempo, gostassem sinceramente desse absurdo. Ou melhor: é a própria sinceridade de suas emoções que é posta em dúvida, num ambiente em que até a noção de "sinceridade" é um componente a mais na máquina publicitária.
Claro que o raciocínio não se aplica apenas aos adolescentes. Todos nós parecemos protagonizar, atualmente, uma mistura de grande despolitização e de muito espírito crítico, uma ironia sem revolta, uma espécie de incredulidade conformista, de senso do ridículo convivendo com muita acomodação. Um medo quase ingênuo de se parecer ingênuo demais: nada mais adolescente do que isso e nada mais típico dos adultos de hoje em dia.


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