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MARCELO COELHO
Ironia salva livro de adolescente dos clichês
O que pensam, o que sentem,
o que fazem os adolescentes
dos grandes centros urbanos brasileiros nos dias de hoje? Não sei
direito. A pergunta, assim formulada, soa um pouco brega para
mim. Parece associada a uma fraseologia bem desagradável, no estilo das mesas-redondas: "Dilemas da Adolescência num Mundo Globalizado", "A Problemática do Adolescente: Rumos e Perspectivas" etc.
Claro que essa "problemática"
existe, mas tratar do assunto com
esse vocabulário já é um convite
ao clichê. Surge imediatamente a
necessidade de falar das drogas,
da falta de perspectivas, do consumismo, da alienação dos "jovens
de hoje". Ainda que verdadeiro, o
discurso é previsível -e logo assume um tom acusatório e externo ao seu objeto.
No que tange ao mau gosto literário, há contudo uma coisa mais
arriscada do que adultos falando
da "problemática" dos adolescentes. É quando os próprios adolescentes se encarregam de falar a
sério sobre si mesmos: difícil que
não reproduzam justamente os
clichês usados pelos adultos.
Nascida em 1983, a carioca Simone Campos acaba de publicar
seu primeiro romance, "No Shopping", pela editora 7 Letras. É
uma excelente surpresa. A autora
não cai na armadilha da "problemática da adolescência" e dos
"testemunhos" sobre a própria
geração.
Claro que seu assunto é esse
mesmo: o cotidiano de adolescentes de classe média alta, que passam o dia no shopping center.
Consumismo, drogas, desencontros amorosos, há tudo isso na
história. O que torna o livro especialmente interessante -e atesta
sua qualidade literária- é que os
aspectos mais previsíveis do seu
tema são como que recalcados,
reprimidos. A autora faz questão
de não colocá-los em primeiro
plano.
"Esta história será contada como me foi contada. Por essa menina. A memória jovem dela confunde os fatos. Prometo que às vezes eles vão soar confusos e dispersos." Assim começa o livro, e, no
paradoxo dessa última frase
-"prometo que os fatos vão soar
confusos e dispersos"-, já podemos ter idéia do tipo de aposta literária em que a autora vai se engajar.
De um lado, podemos entender
a "promessa" como uma ironia:
"Prometo que vou escrever de
modo a decepcionar você, leitor".
De outro, a maneira mais natural
de corresponder à "psicologia do
adolescente" seria narrar os fatos
de modo "confuso e disperso" -e,
nesse sentido, a promessa pode ser
entendida sem ironia: o leitor terá, com efeito, aquilo que esperava encontrar num romance sobre
adolescentes.
Esse jogo duplo parece orientar
o livro inteiro e torna complicada
a tarefa do resenhista. Pois nada
seria mais fácil do que identificar,
em cada página, a confirmação
de tudo o que "se sabe" sobre os
adolescentes.
A tentação seria citar, sem
maiores comentários, a frase da
personagem Delia, que, passeando entre as vitrinas, declara: "Eu
amo esse shopping (...). Amo mais
que tudo". Pronto: teríamos aí o
retrato de uma juventude alienada e consumista etc etc.
Mas, nessa ordem de considerações, não há nada que os próprios
personagens de "No Shopping"
não estejam fartos de saber. Delia
pode muito bem amar o shopping
"mais que tudo", mas não afirma
isso em estado de inocência, como
se fosse uma vítima do espírito de
nosso tempo.
Ela trabalha numa livraria do
shopping. Por puro sarcasmo, mimetiza o marketing convencional
de uma vendedora de livros.
Aponta para um best-seller e diz
para o namorado: "Toda essa
gente maravilhosa que habita
aqui dentro pode ser sua. Você
pode ter a vida delas por 23,50".
Está cansada de saber que as
promessas da publicidade e as belezas do shopping são uma total
tolice. Mas sabe também que denunciar essa tolice não passa de
outro clichê.
O romance inteiro, organizado
em pequenos tópicos numerados
(3.0, 3.1, 3.2, por exemplo), parece
constituir-se numa fuga, numa
recusa sistemática a qualquer clichê -mesmo que seja um clichê
verdadeiro. "Nos anos 80 eu era
pequena e os shoppings eram armadilhas sem bancos pra sentar a
gente andava como camelos gordos escravos do consumo agora
não é mais assim o jornal disse"
-a frase da narradora se interrompe sem pontuação, como que
imitando um automatismo mental a ser, em seguida, substituído
por outro.
No momento em que um garoto
se apaixona por Delia, tudo será
feito para que o previsível, o ridículo dessa situação seja denunciado também: "Agora ele havia
sido infectado. Delia assistia deliciada, sem se abster. As suas
unhas, a sua pele, o seu jeito de ser
era tudo o que ele queria. Ela se
sentia muito em casa, bem-acompanhada".
É talvez por esse senso de pudor,
de ironia -e não pelo que possa
conter a respeito de drogas, de
alienação ou de dilemas adolescentes-, que o livro de Simone
Campos acabe sendo, de fato,
aquilo que se espera dele: o "testemunho de uma geração". Mas
num sentido muito preciso.
É como se os adolescentes de hoje (lá vou eu caindo nessa fraseologia) tivessem plena consciência
de todo o absurdo que há num
shopping e, ao mesmo tempo, gostassem sinceramente desse absurdo. Ou melhor: é a própria sinceridade de suas emoções que é posta em dúvida, num ambiente em
que até a noção de "sinceridade"
é um componente a mais na máquina publicitária.
Claro que o raciocínio não se
aplica apenas aos adolescentes.
Todos nós parecemos protagonizar, atualmente, uma mistura de
grande despolitização e de muito
espírito crítico, uma ironia sem
revolta, uma espécie de incredulidade conformista, de senso do ridículo convivendo com muita
acomodação. Um medo quase ingênuo de se parecer ingênuo demais: nada mais adolescente do
que isso e nada mais típico dos
adultos de hoje em dia.
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