São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COMENTÁRIO

O erotismo do corpo feminino brutalizado

COLUNISTA DA FOLHA

Uma garota espevitada leva palmadas de um homem mais velho. Uma mulher de bruços recebe passivamente raquetadas nas nádegas. Duas lindas mulheres se atracam. Duas garotas jovens se embolam no chão.
Parecem descrições de cenas de filmes pornôs com toques de sadomasoquismo, mas na verdade pertencem às duas últimas novelas das oito da Globo. Após os homens de torso nu na trama das sete, a nova aposta no terreno de liberalização de costumes são as cenas de violência erotizada contra a mulher no horário nobre.
O "produto" foi largamente testado em "Mulheres Apaixonadas" -três das situações no parágrafo anterior aconteceram na novela de Manoel Carlos- e teve sua eficiência em termos de audiência novamente confirmada na última segunda, quando Maria Clara espancou Laura.
É um truque que se pode classificar, sem medo de soar moralista, de sujo: a violência atrai gregos e troianos, mas a violência contra a mulher tem um quê de erótico capaz de fazer o público mais refratário à novela, o dos homens adultos, grudarem em frente à TV.
Nas sociedades machistas -e o Brasil é inequivocamente uma delas, das mais hipócritas-, o erotismo heterossexual masculino adulto compreende doses razoáveis de violência e de desejo de dominação. Uma mulher submetida a uma força maior, sofrendo algum tipo de dor, dobrando-se a uma vontade -ui!
Não à toa, a tal preferência anatômica nacional é a indicação exterior, muito pouco disfarçada, de uma obsessão por um tipo de relação sexual em que algum nível de resistência a ser vencida quase sempre está em jogo. Dessa obsessão cuidam a maioria dos filmes pornográficos dirigidos a homens heterossexuais, ainda banidos da sala de estar, mas, pelo jeito, a novela está se encarregando de lidar com o lado mais leve dessa associação entre corpo feminino brutalizado e erotismo masculino.
O fato de essas cenas terem quase sempre um sabor "justiceiro" não livram a barra. Pelo contrário, fazem todos na sala -a mamãe, o papai, os meninos e as meninas- acreditarem que algumas mulheres em algum momento merecem de fato apanhar.
É um mote sexista conhecidíssimo aquele que diz que o homem pode não saber por que está batendo, mas a mulher certamente saberá por que está apanhando. As cenas de violência contra a mulher, mesmo quando infligida por outra mulher, como o foi em "Celebridade", espertamente são coreografadas como surras -alguém sempre está punindo alguém por um delito real ou imaginário-, e não como brigas entre iguais, como no caso das disputas entre homens.
Para além daquilo que essa nova "moda" representa em termos de banalização da violência, o tempero de erotismo que envolve esse tipo de cena confere significados que não podem -ou não deveriam- ser tratados com leviandade pelas emissoras nem aceitos com passividade por telespectadores. Ou seja, quais são as imagens de gênero que se firmam entre as meninas e os meninos quando a TV que está na sala de casa, com mamãe e papai assistindo e cada um vibrando a seu modo, mostra mulheres apanhando a torto e a direito e, o que é pior, com "razão"? (BIA ABRAMO)


Texto Anterior: Comentário: Maria Clara cinta-larga faz justiça com as próprias mãos
Próximo Texto: Cinema: Carandiru das letras olha para o da telona
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.