São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Drauzio Varella ("Estação Carandiru") e Paulo Sacramento ("O Prisioneiro da Grade de Ferro") cotejam livro e filme

Carandiru das letras olha para o da telona

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Resultado dos 14 anos em que exerceu a medicina no megapresídio paulista Carandiru (extinto em 2002), Drauzio Varella escreveu um fenômeno editorial brasileiro. "Estação Carandiru" (Companhia das Letras, 1999) contabiliza 450 mil exemplares vendidos, num país em que comercializar 30 mil volumes significa êxito.
Em cenário (o cárcere) e com personagens (os condenados) idênticos, o cineasta Paulo Sacramento conviveu durante sete meses, em 2001. Seu relato da experiência tomou a forma do documentário "O Prisioneiro da Grade de Ferro", há duas semanas em cartaz no Rio e em São Paulo. Varella foi um dos primeiros 10 mil espectadores do filme.
Médico e cineasta se encontraram na Folha, na última quinta, para rever o Carandiru que ambos conheceram e que cada um traduziu à sua maneira.

 

A VIOLÊNCIA NO FILME
DRAUZIO VARELLA - O que mais me interessou em "O Prisioneiro da Grade de Ferro" foi o filme resistir à tentação de descrever a violência. A violência é uma tentação para o escritor e, imagino, para o diretor de cinema. Quando você descreve o ato violento, garante a atenção do leitor ou do espectador. Mas a violência é um flash, que explode e cega todo mundo. A sensação que ela transmite turva todo o resto que você está interessado em mostrar. O Paulo fugiu disso maravilhosamente bem. Acho que ele estava interessado em mostrar o resto.

PAULO SACRAMENTO - Estava interessado em mostrar o que não aparece normalmente. Quis fazer um filme sobre cadeias, porque não conhecia nada sobre elas. O que eu via no jornal e na TV me dava só uma parcela, que eu imaginava ser muito pequena, daquilo -rebelião e fugas. Eu pensava: os presos não se rebelam e são capturados todos os dias. Algo acontece além desses momentos extraordinários, de explosão. Eu queria saber como era o dia-a-dia.
 

A VIOLÊNCIA NA CADEIA
SACRAMENTO - No dia-a-dia deles, a questão da violência não é tão forte. Eles não acordam com medo. Nas fotos dos presos mortos [mostradas no filme], metade está com corte de triagem. Ou seja, foram mortos ao entrarem na cadeia, provavelmente no primeiro ou no segundo dia. Já eram jurados de morte, tinham inimigos. A morte foi ali, mas a violência que levou a ela veio daqui de fora. É claro que muitos deles têm um enorme potencial de violência, mas, ali dentro, fica minimizado.

VARELLA - A cadeia diminui a violência, porque desaparece a força bruta do relacionamento. Você não viu lá nenhum preso respeitado por ser forte fisicamente. A força física vale na rua. Dentro da cadeia, não, porque, uma hora, você dorme. Na cadeia é preciso haver regras de convívio. E as regras têm de ser muito bem obedecidas. Para serem obedecidas, tem de haver castigos fortes, impostos rapidamente. Não há o intervalo entre condenar e punir. Na cadeia, se você comete um crime de manhã, na hora do almoço está pagando por ele.
 

A ENTREVISTA CORTADA
VARELLA - Dei uma entrevista para vocês [Sacramento e sua equipe], longa até, que não foi usada no filme. Era uma discussão teórica sobre a cadeia. Tudo o que os presos [co-autores do filme] me perguntaram respondi.

SACRAMENTO - Não quisemos usar a entrevista, porque, na montagem, entendemos que queríamos teorizar menos do que mostrar. Não queríamos as "vozes autorizadas" a falar sobre a cadeia. Não queríamos o autor do livro "Estação Carandiru" falando sobre a cadeia. Queríamos o dr. Drauzio médico. Com certeza, os presos não trocariam o dr. Drauzio médico pelo dr. Drauzio escritor. Imagino que todos os dias havia aquela quantidade de gente e aqueles problemas no seu consultório [no Carandiru]. Mas, quando filmamos, foi muito impressionante, por causa do rapaz com o problema no pescoço [um enorme tumor].

VARELLA - Vocês fizeram a escolha certa ao não teorizar. Tudo o que eu disse o espectador não seria capaz de repetir no dia seguinte. Quem viu a imagem do rapaz com o problema no pescoço vai se lembrar dela daqui a 50 anos.
 

O "CARANDIRU" DE BABENCO

SACRAMENTO - Até hoje não vi o filme do Babenco ["Carandiru" (2003), baseado no livro de Varella], porque não queria comparar o meu trabalho com o dele. É claro que ainda vou assisti-lo. Vi todos os filmes dele e gosto muito. Mas, enquanto estou dando entrevistas sobre meu filme, não quero falar de outra coisa. Quero falar do meu trabalho.
VARELLA - Enquanto eu escrevi "Estação Carandiru", não li nenhum livro de cadeia, nem "Recordações da Casa dos Mortos" [de Fiodor Dostoiévski].

SACRAMENTO - Acredito que Babenco também não tenha visto o meu filme.

VARELLA - Não sei se viu.

SACRAMENTO - O que aconteceu, talvez, é que "Carandiru" foi tão grande [4,6 milhões de espectadores, recorde entre os filmes nacionais] que tudo o que vem depois parece ser subproduto dele. Agora, só posso falar do meu filme. Daqui a alguns anos talvez queira falar dos dois.

VARELLA - São duas leituras totalmente diferentes da cadeia, cada uma com o seu interesse. O filme do Babenco é monumental, maravilhoso, feito com um compromisso muito menor de retratar a cadeia do que o seu. Porque a realidade, realmente, o que é? Nada tem significado. Não adianta querer procurar o significado de um filme. O significado é o que você dá a ele, quando o assiste.
 

AS REVELAÇÕES DA CADEIA
SACRAMENTO - O que mais me chamou a atenção foi a criatividade dos presos. Usam a falta de condições como elemento de criação. Não estavam mortos ali dentro. Levavam uma vida o mais interessante possível. O corpo encarcerado, mas a cabeça não.

VARELLA - O que mais me fascinou na cadeia foi a abrangência do código penal. Não há nada escrito, mas você sabe se qualquer ato pode ser feito ou não. Posso usar o colarinho da camisa aberto no dia de visita? Pode. O segundo botão da camisa aberto? Não. Aí você pergunta: por que não? Porque está errado. Não existe zona cinzenta entre o certo e o errado.
 

DUAS CONFISSÕES
VARELLA - Eu não tinha a dimensão do impacto que o exercício da medicina tem no imaginário humano. Quando comecei a me dar conta disso, fazia uma coisa que hoje tenho até certa vergonha de dizer. Às vezes, eu entrava na cadeia e tinha de ir ao pavilhão 4. Eu inventava um pretexto e ia ao pavilhão 2, atravessava o 5, seguia para o 8 -onde fica a nata da cadeia, os reincidentes-, subia até o quarto andar, entrava pela galeria, dava a volta completa, como se estivesse procurando alguém. Não estava procurando ninguém. Fazia isso só para ter o prazer de andar pela cadeia inteirinha, sozinho, e as pessoas me cumprimentando: "Oi, doutor". "Tudo bem, doutor?" Nunca interpretei isso pessoalmente. Sempre soube que acontecia pelo fato de eu ser médico. É impressionante você conseguir, com o exercício de sua profissão, impor esse respeito.

SACRAMENTO - Se tive algum momento de medo, foi durante uns dois minutos, no quarto mês de filmagens. Conforme íamos conquistando a confiança e o afeto dos presos, conquistávamos também a raiva dos funcionários. Eles nos viam muito próximos dos presos e achavam que estávamos dando bola para vagabundos. Um deles, maldosamente, disse: "Vocês continuam andando por aí, sem escolta... Qualquer hora, vão jogar um cobertor em cima de vocês e vocês vão chegar aqui com 40 facadas". Isso não é coisa que se diga para ninguém. Ficamos um olhando para o outro por dois minutos. Mas logo nos lembramos de que isso não tinha absolutamente nada a ver com a realidade que vivíamos ali dentro.
 

O FASCÍNIO DO PÚBLICO
VARELLA - O universo da cadeia é mesmo fascinante. O homem aprisionado é um dos limites da condição humana. Quem, em sua fantasia, nunca se imaginou trancado numa cadeia? De outro lado, há uma necessidade de entender o que se passa. Quem são essas pessoas que a gente só vê quando sobem no teto e põem fogo nos colchões? O que fazem? O que pensam? Como sobrevivem?

SACRAMENTO - Além da questão filosófica -do limite do aprisionamento-, a cadeia traz a questão da marginalidade. O criminoso é, entre aspas, um ser livre, que não se atém às restrições da lei. É quase como um super-herói. Não é à toa que 50% dos filmes americanos são sobre criminosos.


Texto Anterior: Comentário: O erotismo do corpo feminino brutalizado
Próximo Texto: Paulo Sacramento: Cineasta estréia em longa com documentário
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.