São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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TELEVISÃO

Adaptação da peça de Tony Kushner, com Al Pacino e Meryl Streep no elenco, será exibida no canal pago HBO

"Angels in America" é um "Dallas" liberal

Divulgação
A atriz Emma Thompson em cena da série "Angels in America"


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Há dois tipos de filmes norte-americanos sobre o Vietnã: os do tipo Rambo, que consideram a guerra como um trabalho que teve que ser feito e foi apenas mal-acabado; e os de denúncia, que mostram como adolescentes despreparados massacraram uma população indefesa. Não há nenhum que eu conheça, no entanto, que apresente um fato histórico simples: os Estados Unidos perderam essa guerra.
Seja na denúncia, seja no ufanismo, os Estados Unidos, maiores produtores de entretenimento do mundo, produzem fábulas sobre heróis. Estejam eles em Roma antiga ou perdidos no espaço, sempre os valores familiares prevalecerão, a confiança na liberdade, a destruição dos maus. Um maniqueísmo que encanta o mundo há tanto tempo que parece irreversível sua influência.
"Angels in America" surgiu como um acerto de contas interno contra a hipocrisia da era Reagan, que criminosamente tentou varrer para baixo do tapete a primeira fase da epidemia de Aids, o que a fez se alastrar pelo mundo. Escrita com coragem por Tony Kushner, gay, socialista e judeu, a peça resgatou apaixonadamente o teatro de texto, em uma fase que ele cedia ao espetáculo, e ganhou todos os prêmios possíveis.
Recentemente a peça conheceu sua definitiva consagração em sua adaptação para a TV, que a HBO transmitiu para 30 milhões de lares na Terra dos Bravos.
Com o homossexualismo necessitando de um esforço menor para ser aceito, graças a sitcoms conservadores com protagonistas gays, os norte-americanos médios se enterneceram com os anjos e os desvalidos, como se não houvessem entrado em um novo ciclo de puritanismo e discriminação.
O grande mérito, portanto, de "Angels in America" hoje é o de demostrar que os gays podem ser tão convencionais, tão enternecedoramente comuns em seus conflitos amorosos e existenciais quanto os heterossexuais que os descriminam.
Agora é privilégio nosso, americanos mais ao sul, poder também ver esses anjos. A qualidade técnica da série é inquestionável, com seu roteiro simples e fluente, e diálogos ágeis e bem-humorados que disfarçam a pieguice verborrágica desse melodrama.
Al Pacino está fascinantemente abjeto no papel do gay conservador; Marie-Louise Parker faz, com uma verdade cativante, a dona-de-casa mórmon viciada em Valium para enfrentar o homossexualismo do marido; e Emma Thompson faz a enfermeira com um perfeito sotaque americano e um talento muito além do necessário para o papel.
Mas é um pouco constrangedor constatar que a denúncia, mediana e convencional, da hipocrisia do conservadorismo norte-americano acabou se tornando mais um produto de auto-exaltação daqueles que se arrogam o direito de se nomear com o nome do continente.
O toque de Midas do marketing faz com que essa guerra perdida contra a Aids e a discriminação acabe soando exatamente como o seriado "Dallas", da era Reagan. Que os anjos salvem a América do Norte, porque ela precisa muito. Em todo caso, os produtores estadunidenses podem contar com nosso ávido e subserviente apetite pelo sonho americano.


Angels in America
  
Quando: estréia dia 9, às 21h, no HBO



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