São Paulo, sexta, 2 de maio de 1997.

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Vidas Imaginárias

Com ``Vidas Imaginárias'', o escritor francês Marcel Schwob (1867-1905) modificou a história da literatura com seu cruzamento da ficção com a realidade. Depois de cem anos de seu lançamento, uma tradução do livro será publicada neste mês no Brasil pela editora 34. A obra reúne 23 biografias imaginárias de personagens históricos tão variados como a princesa Pocahontas, o filósofo Empédocles e o pirata Capitão Kid. Leia trechos das imaginações reais de um dos escritores mais apreciados pelos próprios escritores publicados com exclusividade pela Folha

Pocahontas

Pocahontas era a filha do rei Powhatan, que se sentava num trono feito à maneira de um leito, coberto por uma vestimenta costurada com peles de camundongo, cujas caudas ficavam pendentes. Ela foi educada numa cabana forrada de palha, entre os sacerdotes e as mulheres que tinham a cabeça e as espáduas pintadas de vermelho vivo e que a divertiam com argolas de cobre e guizos de serpente. Namontak, um servidor fiel, vigiava a princesa e organizava suas brincadeiras. Algumas vezes levavam-na até a floresta perto do grande rio Rappahanok, e 30 virgens nuas dançavam para distraí-la. Pintavam-se com várias cores e cobriam-se de folhas verdes, levavam na cabeça chifres de bode, e uma pele de lontra na cintura, e, agitando clavas, pulavam em volta de uma fogueira que crepitava. A dança terminada, apagavam as chamas e reconduziam a princesa à luz de tições.
No ano de 1607, a região de Pocahontas foi perturbada por europeus. Fidalgos arruinados, escroques e caçadores de ouro vieram se estabelecer no rio Potomac, e construíram cabanas de madeiras. Deram às cabanas o nome de Jamestown, e chamaram Virgínia a sua colônia. A Virgínia não passava, nesses anos, de um miserável e pequeno forte construído na baía de Chesapeake, no meio dos domínios do grande rei Powhatan. Os colonos elegeram para presidente da colônia John Smith, que outrora vivera uma aventura entre os turcos. Caminhavam sobre as rochas e viviam do mar e do pouco que podiam obter pelo tráfico com os indígenas.
No começo foram recebidos com uma grande cerimônia. Um sacerdote selvagem veio tocar diante deles uma flauta de caniço, usando em volta de seus cabelos atados uma coroa de pele de gamo pintada de vermelho, e aberta como uma rosa. Seu corpo estava pintado de carmesim, seu rosto de azul; e ele tinha a pele salpicada com pontos de prata nativa. Então, com o rosto impassível, ele sentou-se numa esteira, e fumou um cachimbo de tabaco.
Depois outros se alinharam em colunas que formavam quadrados, pintados de negro, vermelho e branco, e alguns pintados pela metade, cantando e dançando diante de seu ídolo Oki, feito de peles de serpentes recheadas de musgo e ornado com correntes de cobre.
Mas alguns dias depois, o capitão Smith, ao explorar o rio numa canoa, foi de repente atacado e amarrado. Levaram-no entre gritos terríveis até uma casa comprida onde ele ficou vigiado por 40 selvagens. Os sacerdotes, com seus olhos pintados de vermelho e as figuras negras atravessadas por grandes listras brancas, cercaram duas vezes a fogueira da casa de guarda com um rasto de farinha e de grãos de trigo. Em seguida John Smith foi conduzido à cabana do rei. Powhatan estava vestido com suas peles e aqueles que o rodeavam tinham os cabelos ornados com penugens de pássaro. Uma mulher trouxe água para o capitão lavar suas mãos, e uma outra as enxugou com um tufo de plumas. Enquanto isso dois gigantes vermelhos depuseram duas pedras lisas aos pés de Powhatan. E o rei levantou a mão, indicando que John Smith ia ser deitado sobre essas pedras e que esmagaria sua cabeça a golpe de clava.
Pocahontas só tinha 12 anos e avançava timidamente sua figura entre os conselheiros. Ela gemeu, correu para o capitão e pôs a cabeça contra seu rosto. John Smith tinha 29 anos, grandes bigodes, a barba em leque, e seu rosto era aquilino. Disseram-lhe que o nome da filha do rei, que lhe salvava a vida, era Pocahontas. Mas este não era seu verdadeiro nome. O rei Powhatan fez a paz com John Smith e o colocou em liberdade.
Um ano mais tarde, o capitão Smith acampou com sua tropa na floresta fluvial. Era noite espessa; uma chuva penetrante abafava qualquer barulho. Súbito, Pocahontas tocou o ombro do capitão. Ela tinha atravessado, sozinha, as medonhas trevas do bosque. Ela lhe segredou que seu pai queria atacar os ingleses e matá-los quando eles estivessem ceando. Suplicou que fugissem, se queriam viver. O capitão Smith lhe ofereceu vidrilhos e fitas; mas ela chorou e respondeu que não ousava tanto. E fugiu, sozinha, para a floresta.
No ano seguinte, o capitão Smith caiu em desgraça junto aos colonos, e, em 1609 foi embarcado para a Inglaterra. Ali, ele compôs livros sobre a Virgínia, onde explicava a situação dos colonos e contava suas aventuras. Por volta de 1612, um certo capitão Argall, negociando com os Potomacs (que eram o povo do rei Powhatan), sequestrou a princesa Pocahontas e a prendeu no navio como refém. O rei, seu pai, ficou indignado; mas ela não lhe foi devolvida. Assim, prisioneira, começou a debilitar-se até o dia em que um fidalgo de boas maneiras, John Rolfe, se enamorou dela e a desposou. Casaram-se em abril de 1613. Diz-se que Pocahontas confessou seu amor a um de seus irmãos, que veio vê-la. Ela chegou à Inglaterra no mês de junho de 1616, onde reinava, entre as pessoas da sociedade, grande curiosidade para visitá-la. A boa rainha Anne acolheu-a com ternura e ordenou que gravassem seu retrato.
O capitão John Smith, que a voltar para a Virgínia, veio prestar-lhe homenagem antes de embarcar. Ele não a via desde 1608. Ela tinha 22 anos. Quando ele entrou, ela virou a cabeça e escondeu seu rosto, não respondendo nem a seu marido nem a seus amigos, e ficou sozinha durante duas ou três horas. Depois chamou o capitão. Então ergueu os olhos e lhe disse:
"Vós prometestes a Powhatan que o que fosse vosso seria dele também, e ele fez o mesmo; sendo estrangeiro em sua pária, vós iríeis chamá-lo "pai"; sendo estrangeira na vossa, eu vos chamarei assim."
O capitão Smith desculpou-se alegando que ela era filha de rei.
Ela respondeu:
"Vós temestes ir até o país de meu pai, e o assustastes, a ele e todos os outros, exceto a mim: temeis agora que eu vos chame de "meu pai?" Eu vos chamarei "meu pai", e vós me chamareis "minha filha", e serei para sempre da mesma pátria que vós... Lá disseram-me que tínheis morrido..."
E ela confiou em segredo a John Smith que seu nome era Matoaka. Os índios, temendo que se apossassem dela por meio de algum malefício, tinha dado aos estrangeiros o nome falso de Pocahontas.
John Smith partiu para a Virgínia e jamais serviu Matoaka. Ela adoeceu em Gravesend, no começo do ano seguinte, perdeu as cores e morreu. Não tinha ainda 23 anos.
Seu retrato traz esta inscrição: "Matoaka aliás Rebecca filia potentissimi principis Powhatani imperatoris Virginiae". A pobre Matoaka tinha um chapéu de feltro alto, com duas guirlandas de pérolas; uma grande gola de renda engomada, e um leque de plumas. Tinha o rosto fino, as maçãs do rosto salientes e grandes olhos doces.


Capitão Kid

Ninguém se lembra por que razão deu-se a este pirata o nome do cabrito (Kid). O ato pelo qual Guilherme 3º, rei da Inglaterra, investiu-o com uma patente sobre a galera ``Aventura'', em 1695, começa com as palavras: ``A nosso leal e bem-amado capitão William Kid, comandante, etc. Saudações.'' Mas é certo que, desde então, era um nome de guerra. Alguns dizem que ele tinha por hábito, sendo elegante e refinado, usar sempre, no combate e nas manobras, delicadas luvas de cabra pelo avesso com renda de Flandres; outros asseguram que, em suas piores matanças, ele exclamava: ``Eu que sou doce e bom com um cabrito recém-nascido''; outros ainda pretendem que ele guardava o ouro e as jóias em sacos muito leves, feitos de pele de cabra, e que o uso lhe ocorreu no dia em que pilhou uma nau carregada de mercúrio com o qual encheu mil bolsas de couro, que ainda estão enterradas no flanco de uma pequena colina nas ilhas Barbados. Basta saber que seu pavilhão de seda negra estava bordado com uma caveira e uma cabeça de cabrito, e que seu sinete estava gravado da mesma maneira. Aqueles que procuram os numerosos tesouros que ele escondeu nas costas dos continentes da Ásia e da América, levam um cabrito negro, o qual deve berrar no lugar em que o capitão escondeu seu saque; mas nenhum deles teve êxito. O próprio Barba-Negra, que fora informado por um antigo marinheiro de Kid, Gabriel Loff, só encontrou nas dunas, nas quais está hoje Fort Providence, gotas esparsas de mercúrio aflorando através das areias. Todas essas escavações são inúteis, pois o capitão Kit declarou que seus esconderijos permaneceriam eternamente desconhecidos por causa do ``homem com o balde ensanguentado''. Kid, com efeito, viveu assombrado por esse homem durante toda sua vida, e os tesouros de Kid são assombrados e defendidos por ele, desde sua morte.
Lord Bellamont, governador dos Barbados, irritado com o enorme saque dos piratas nas Índias Ocidentais, equipou a galera Aventura e obteve do rei, para o capitão Kid, o posto de comandante. Há muito Kid invejava o famoso irlandês, que pilhava todo e qualquer convés; prometeu a lord Bellamont tomar sua chalupa e trazê-lo com seu companheiros para fazê-los executar. A aventura tinha 30 canhões e 150 homens. Primeiro Kid aportou na Madeira e se abasteceu de vinho; depois em Bonavista, para carregar sal; por fim, em Santiago, onde se abasteceu completamente. Daí velejou até a entrada do Mar Vermelho, onde, no Golfo Pérsico, há um recanto com uma pequena ilha que se chama a Chave de Bab.
Foi aí que o capitão Kid reuniu seu companheiros e içou o pavilhão negro com a caveira. Todos juraram, sob o machado, obediência absoluta aos regulamentos dos piratas. Todo homem tinha direito a voto, e direito igual às provisões frescas e aos licores fortes. Os jogos de cartas e de dados foram interditos. As luzes e velas deviam ser apagadas às oito horas da noite. Se um homem quisesse beber mais tarde, teria que beber na ponte, à noite, a céu descoberto. A companhia não receberia nem mulher nem menino. Aquele que os introduzisse disfarçados seria punido com a morte. Os canhões, pistolas e facões deviam ser conservados e lustrados. As disputas se resolveriam em terra, com sabre e pistola. O capitão e o quartel-mestre teriam direito a duas partes; o mestre, o contramestre, o canhoneiro, a uma e meia; os outros oficiais, a uma e um quarto. Descanso para os marinheiros no sábado.
O primeiro navio que encontraram era holandês, comandado pelo Schipper Mitchel. Kid içou o pavilhão francês e começou a perseguição. O navio logo mostrou as cores francesas; então o capitão gritou de longe em francês. O Schipper tinha um francês a bordo, que respondeu. Kid perguntou se ele tinha um passaporte. O francês disse que sim. ``Pois bem, por Deus, respondeu Kid, em virtude de vosso passaporte, eu vos tomo por capitão deste navio.'' E imediatamente, o enforcou na verga. Depois mandou buscar os holandeses um a um. Interrogou-os, e, fingindo não entender o flamengo, ordenou para cada prisioneiro: ``Francês - a prancha!'' Colocaram uma prancha na proa. Todos os holandeses tiveram que correr por cima dela, nus, diante da ponta do facão do contramestre, e saltar no mar.
Nesse instante, o canhoneiro do capitão Kid, Moor, levantou a voz: ``Capitão'', ele gritou, ``por que matais estes homens?'' Moor estava bêbado. O capitão se voltou e, apanhando um balde, acertou-lhe a cabeça. Moor caiu, o crânio rachado. O capitão Kid mandou lavar o balde, no qual os cabelos tinham se colado, com sangue coagulado. Nenhum homem da tripulação quis mais mergulhar o lambaz nele. Deixaram o balde amarrado nas redes do filerete.
Desse dia em diante, o capitão passou a ser assombrado pelo homem do balde. Quando tomou a nau moura Queda, armada por hindus e armênios, com 10 mil libras de ouro, na partilha do saque o homem do balde ensanguentado estava sentado sobre os ducados. Kid viu-o claramente e praguejou. Desceu para sua cabine e esvaziou um copo de vinho. Depois, de volta à ponte, mandou lançar o antigo balde no mar. Na abordagem da rica nau de comércio Mocco, não se achava nada para medir a parte de ouro em pós do capitão. ``Enche um balde'', disse uma voz atrás do ombro de Kid. Ele cortou o ar com seu facão e enxugou os lábios, que espumavam. Depois mandou enforcar os armênios. Os homens da tripulação pareciam nada ter ouvido. Quando Kid atacou o Andorinha, estendeu-se sobre seu leito após a partilha. Quando acordou, sentiu-se molhado de suor, e chamou um marinheiro para que lhe trouxesse algo com que pudesse se lavar. O homem trouxe água numa bacia de estanho. Kid olhou-o fixamente e urrou: ``É assim que se conduz um cavalheiro da fortuna? Miserável! tu me trazes um balde cheio de sangue!'' O marinheiro fugiu. Kid desembarcou-o e abandonou-o em terra, com um fuzil, uma garrafa de pólvora e uma garrafa de água. Não havia outro motivo para enterrar seus saques nos mais variados lugares solitários, entre as areias, a não ser por estar persuadido de que todas as noites o canhoneiro assassinado vinha esvaziar o paiol de ouro com seu balde para jogar as riquezas no mar.
Kid acabou sendo aprisionado nas costas de New York. Lord Bellamont enviou-o para Londres. Foi condenado ao patíbulo. Enforcaram-no no cais da Execução, com sua roupa vermelha e suas luvas. No momento em que o carrasco lhe enfiou o capuz negro, o capitão Kid se debateu e gritou: ``Por Deus! eu bem sabia que ele colocaria seu balde na minha cabeça!'' O cadáver enegrecido ficou enganchado nos grilhões durante mais de 20 anos.

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