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Vidas Imaginárias
Com ``Vidas
Imaginárias'', o
escritor francês
Marcel Schwob
(1867-1905)
modificou a história
da literatura com seu
cruzamento da ficção
com a realidade.
Depois de cem anos
de seu lançamento,
uma tradução do
livro será publicada
neste mês no Brasil
pela editora 34. A
obra reúne 23
biografias
imaginárias de
personagens
históricos tão
variados como a
princesa Pocahontas,
o filósofo Empédocles
e o pirata Capitão
Kid. Leia trechos das
imaginações reais de
um dos escritores
mais apreciados pelos
próprios escritores
publicados com
exclusividade pela
Folha
Pocahontas
Pocahontas era a filha do rei Powhatan, que se sentava num trono
feito à maneira de um leito, coberto por uma vestimenta costurada
com peles de camundongo, cujas
caudas ficavam pendentes. Ela foi
educada numa cabana forrada de
palha, entre os sacerdotes e as mulheres que tinham a cabeça e as espáduas pintadas de vermelho vivo
e que a divertiam com argolas de
cobre e guizos de serpente. Namontak, um servidor fiel, vigiava a
princesa e organizava suas brincadeiras. Algumas vezes levavam-na
até a floresta perto do grande rio
Rappahanok, e 30 virgens nuas
dançavam para distraí-la. Pintavam-se com várias cores e cobriam-se de folhas verdes, levavam na cabeça chifres de bode, e
uma pele de lontra na cintura, e,
agitando clavas, pulavam em volta
de uma fogueira que crepitava. A
dança terminada, apagavam as
chamas e reconduziam a princesa
à luz de tições.
No ano de 1607, a região de Pocahontas foi perturbada por europeus. Fidalgos arruinados, escroques e caçadores de ouro vieram se
estabelecer no rio Potomac, e
construíram cabanas de madeiras.
Deram às cabanas o nome de Jamestown, e chamaram Virgínia a
sua colônia. A Virgínia não passava, nesses anos, de um miserável e
pequeno forte construído na baía
de Chesapeake, no meio dos domínios do grande rei Powhatan.
Os colonos elegeram para presidente da colônia John Smith, que
outrora vivera uma aventura entre
os turcos. Caminhavam sobre as
rochas e viviam do mar e do pouco
que podiam obter pelo tráfico com
os indígenas.
No começo foram recebidos
com uma grande cerimônia. Um
sacerdote selvagem veio tocar
diante deles uma flauta de caniço,
usando em volta de seus cabelos
atados uma coroa de pele de gamo
pintada de vermelho, e aberta como uma rosa. Seu corpo estava
pintado de carmesim, seu rosto de
azul; e ele tinha a pele salpicada
com pontos de prata nativa. Então, com o rosto impassível, ele
sentou-se numa esteira, e fumou
um cachimbo de tabaco.
Depois outros se alinharam em
colunas que formavam quadrados, pintados de negro, vermelho
e branco, e alguns pintados pela
metade, cantando e dançando
diante de seu ídolo Oki, feito de
peles de serpentes recheadas de
musgo e ornado com correntes de
cobre.
Mas alguns dias depois, o capitão
Smith, ao explorar o rio numa canoa, foi de repente atacado e
amarrado. Levaram-no entre gritos terríveis até uma casa comprida onde ele ficou vigiado por 40
selvagens. Os sacerdotes, com seus
olhos pintados de vermelho e as figuras negras atravessadas por
grandes listras brancas, cercaram
duas vezes a fogueira da casa de
guarda com um rasto de farinha e
de grãos de trigo. Em seguida John
Smith foi conduzido à cabana do
rei. Powhatan estava vestido com
suas peles e aqueles que o rodeavam tinham os cabelos ornados
com penugens de pássaro. Uma
mulher trouxe água para o capitão
lavar suas mãos, e uma outra as
enxugou com um tufo de plumas.
Enquanto isso dois gigantes vermelhos depuseram duas pedras lisas aos pés de Powhatan. E o rei
levantou a mão, indicando que
John Smith ia ser deitado sobre essas pedras e que esmagaria sua cabeça a golpe de clava.
Pocahontas só tinha 12 anos e
avançava timidamente sua figura
entre os conselheiros. Ela gemeu,
correu para o capitão e pôs a cabeça contra seu rosto. John Smith tinha 29 anos, grandes bigodes, a
barba em leque, e seu rosto era
aquilino. Disseram-lhe que o nome da filha do rei, que lhe salvava a
vida, era Pocahontas. Mas este não
era seu verdadeiro nome. O rei Powhatan fez a paz com John Smith e
o colocou em liberdade.
Um ano mais tarde, o capitão
Smith acampou com sua tropa na
floresta fluvial. Era noite espessa;
uma chuva penetrante abafava
qualquer barulho. Súbito, Pocahontas tocou o ombro do capitão.
Ela tinha atravessado, sozinha, as
medonhas trevas do bosque. Ela
lhe segredou que seu pai queria
atacar os ingleses e matá-los quando eles estivessem ceando. Suplicou que fugissem, se queriam viver. O capitão Smith lhe ofereceu
vidrilhos e fitas; mas ela chorou e
respondeu que não ousava tanto. E
fugiu, sozinha, para a floresta.
No ano seguinte, o capitão Smith
caiu em desgraça junto aos colonos, e, em 1609 foi embarcado para a Inglaterra. Ali, ele compôs livros sobre a Virgínia, onde explicava a situação dos colonos e contava suas aventuras. Por volta de
1612, um certo capitão Argall, negociando com os Potomacs (que
eram o povo do rei Powhatan), sequestrou a princesa Pocahontas e a
prendeu no navio como refém. O
rei, seu pai, ficou indignado; mas
ela não lhe foi devolvida. Assim,
prisioneira, começou a debilitar-se até o dia em que um fidalgo
de boas maneiras, John Rolfe, se
enamorou dela e a desposou. Casaram-se em abril de 1613. Diz-se
que Pocahontas confessou seu
amor a um de seus irmãos, que
veio vê-la. Ela chegou à Inglaterra
no mês de junho de 1616, onde reinava, entre as pessoas da sociedade, grande curiosidade para visitá-la. A boa rainha Anne acolheu-a
com ternura e ordenou que gravassem seu retrato.
O capitão John Smith, que a voltar para a Virgínia, veio prestar-lhe homenagem antes de embarcar. Ele não a via desde 1608.
Ela tinha 22 anos. Quando ele entrou, ela virou a cabeça e escondeu
seu rosto, não respondendo nem a
seu marido nem a seus amigos, e
ficou sozinha durante duas ou três
horas. Depois chamou o capitão.
Então ergueu os olhos e lhe disse:
"Vós prometestes a Powhatan
que o que fosse vosso seria dele
também, e ele fez o mesmo; sendo
estrangeiro em sua pária, vós iríeis
chamá-lo "pai"; sendo estrangeira na vossa, eu vos chamarei assim."
O capitão Smith desculpou-se
alegando que ela era filha de rei.
Ela respondeu:
"Vós temestes ir até o país de
meu pai, e o assustastes, a ele e todos os outros, exceto a mim: temeis agora que eu vos chame de
"meu pai?" Eu vos chamarei
"meu pai", e vós me chamareis
"minha filha", e serei para sempre da mesma pátria que vós... Lá
disseram-me que tínheis morrido..."
E ela confiou em segredo a John
Smith que seu nome era Matoaka.
Os índios, temendo que se apossassem dela por meio de algum
malefício, tinha dado aos estrangeiros o nome falso de Pocahontas.
John Smith partiu para a Virgínia e jamais serviu Matoaka. Ela
adoeceu em Gravesend, no começo do ano seguinte, perdeu as cores e morreu. Não tinha ainda 23
anos.
Seu retrato traz esta inscrição:
"Matoaka aliás Rebecca filia potentissimi principis Powhatani imperatoris Virginiae". A pobre Matoaka tinha um chapéu de feltro alto, com duas guirlandas de pérolas; uma grande gola de renda engomada, e um leque de plumas.
Tinha o rosto fino, as maçãs do
rosto salientes e grandes olhos doces.
Capitão Kid
Ninguém se lembra por que razão deu-se a este pirata o nome do
cabrito (Kid). O ato pelo qual Guilherme 3º, rei da Inglaterra, investiu-o com uma patente sobre a galera ``Aventura'', em 1695, começa
com as palavras: ``A nosso leal e
bem-amado capitão William Kid,
comandante, etc. Saudações.'' Mas
é certo que, desde então, era um
nome de guerra. Alguns dizem que
ele tinha por hábito, sendo elegante e refinado, usar sempre, no
combate e nas manobras, delicadas luvas de cabra pelo avesso com
renda de Flandres; outros asseguram que, em suas piores matanças,
ele exclamava: ``Eu que sou doce e
bom com um cabrito recém-nascido''; outros ainda pretendem que
ele guardava o ouro e as jóias em
sacos muito leves, feitos de pele de
cabra, e que o uso lhe ocorreu no
dia em que pilhou uma nau carregada de mercúrio com o qual encheu mil bolsas de couro, que ainda estão enterradas no flanco de
uma pequena colina nas ilhas Barbados. Basta saber que seu pavilhão de seda negra estava bordado
com uma caveira e uma cabeça de
cabrito, e que seu sinete estava
gravado da mesma maneira.
Aqueles que procuram os numerosos tesouros que ele escondeu
nas costas dos continentes da Ásia
e da América, levam um cabrito
negro, o qual deve berrar no lugar
em que o capitão escondeu seu saque; mas nenhum deles teve êxito.
O próprio Barba-Negra, que fora
informado por um antigo marinheiro de Kid, Gabriel Loff, só encontrou nas dunas, nas quais está
hoje Fort Providence, gotas esparsas de mercúrio aflorando através
das areias. Todas essas escavações
são inúteis, pois o capitão Kit declarou que seus esconderijos permaneceriam eternamente desconhecidos por causa do ``homem
com o balde ensanguentado''. Kid,
com efeito, viveu assombrado por
esse homem durante toda sua vida, e os tesouros de Kid são assombrados e defendidos por ele, desde
sua morte.
Lord Bellamont, governador dos
Barbados, irritado com o enorme
saque dos piratas nas Índias Ocidentais, equipou a galera Aventura e obteve do rei, para o capitão
Kid, o posto de comandante. Há
muito Kid invejava o famoso irlandês, que pilhava todo e qualquer
convés; prometeu a lord Bellamont tomar sua chalupa e trazê-lo
com seu companheiros para fazê-los executar. A aventura tinha
30 canhões e 150 homens. Primeiro Kid aportou na Madeira e se
abasteceu de vinho; depois em Bonavista, para carregar sal; por fim,
em Santiago, onde se abasteceu
completamente. Daí velejou até a
entrada do Mar Vermelho, onde,
no Golfo Pérsico, há um recanto
com uma pequena ilha que se chama a Chave de Bab.
Foi aí que o capitão Kid reuniu
seu companheiros e içou o pavilhão negro com a caveira. Todos
juraram, sob o machado, obediência absoluta aos regulamentos dos
piratas. Todo homem tinha direito
a voto, e direito igual às provisões
frescas e aos licores fortes. Os jogos de cartas e de dados foram interditos. As luzes e velas deviam
ser apagadas às oito horas da noite.
Se um homem quisesse beber mais
tarde, teria que beber na ponte, à
noite, a céu descoberto. A companhia não receberia nem mulher
nem menino. Aquele que os introduzisse disfarçados seria punido
com a morte. Os canhões, pistolas
e facões deviam ser conservados e
lustrados. As disputas se resolveriam em terra, com sabre e pistola.
O capitão e o quartel-mestre teriam direito a duas partes; o mestre, o contramestre, o canhoneiro,
a uma e meia; os outros oficiais, a
uma e um quarto. Descanso para
os marinheiros no sábado.
O primeiro navio que encontraram era holandês, comandado pelo Schipper Mitchel. Kid içou o pavilhão francês e começou a perseguição. O navio logo mostrou as
cores francesas; então o capitão
gritou de longe em francês. O
Schipper tinha um francês a bordo, que respondeu. Kid perguntou
se ele tinha um passaporte. O francês disse que sim. ``Pois bem, por
Deus, respondeu Kid, em virtude
de vosso passaporte, eu vos tomo
por capitão deste navio.'' E imediatamente, o enforcou na verga.
Depois mandou buscar os holandeses um a um. Interrogou-os, e,
fingindo não entender o flamengo,
ordenou para cada prisioneiro:
``Francês - a prancha!'' Colocaram uma prancha na proa. Todos
os holandeses tiveram que correr
por cima dela, nus, diante da ponta do facão do contramestre, e saltar no mar.
Nesse instante, o canhoneiro do
capitão Kid, Moor, levantou a voz:
``Capitão'', ele gritou, ``por que
matais estes homens?'' Moor estava bêbado. O capitão se voltou e,
apanhando um balde, acertou-lhe
a cabeça. Moor caiu, o crânio rachado. O capitão Kid mandou lavar o balde, no qual os cabelos tinham se colado, com sangue coagulado. Nenhum homem da tripulação quis mais mergulhar o lambaz nele. Deixaram o balde amarrado nas redes do filerete.
Desse dia em diante, o capitão
passou a ser assombrado pelo homem do balde. Quando tomou a
nau moura Queda, armada por
hindus e armênios, com 10 mil libras de ouro, na partilha do saque
o homem do balde ensanguentado
estava sentado sobre os ducados.
Kid viu-o claramente e praguejou.
Desceu para sua cabine e esvaziou
um copo de vinho. Depois, de volta à ponte, mandou lançar o antigo
balde no mar. Na abordagem da
rica nau de comércio Mocco, não
se achava nada para medir a parte
de ouro em pós do capitão. ``Enche um balde'', disse uma voz atrás
do ombro de Kid. Ele cortou o ar
com seu facão e enxugou os lábios,
que espumavam. Depois mandou
enforcar os armênios. Os homens
da tripulação pareciam nada ter
ouvido. Quando Kid atacou o Andorinha, estendeu-se sobre seu leito após a partilha. Quando acordou, sentiu-se molhado de suor, e
chamou um marinheiro para que
lhe trouxesse algo com que pudesse se lavar. O homem trouxe água
numa bacia de estanho. Kid
olhou-o fixamente e urrou: ``É assim que se conduz um cavalheiro
da fortuna? Miserável! tu me trazes
um balde cheio de sangue!'' O marinheiro fugiu. Kid desembarcou-o e abandonou-o em terra,
com um fuzil, uma garrafa de pólvora e uma garrafa de água. Não
havia outro motivo para enterrar
seus saques nos mais variados lugares solitários, entre as areias, a
não ser por estar persuadido de
que todas as noites o canhoneiro
assassinado vinha esvaziar o paiol
de ouro com seu balde para jogar
as riquezas no mar.
Kid acabou sendo aprisionado
nas costas de New York. Lord Bellamont enviou-o para Londres.
Foi condenado ao patíbulo. Enforcaram-no no cais da Execução,
com sua roupa vermelha e suas luvas. No momento em que o carrasco lhe enfiou o capuz negro, o capitão Kid se debateu e gritou: ``Por
Deus! eu bem sabia que ele colocaria seu balde na minha cabeça!'' O
cadáver enegrecido ficou enganchado nos grilhões durante mais
de 20 anos.
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