São Paulo, sábado, 02 de junho de 2001

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FOLHA INÉDITOS

Seis retratos do fim dos tempos

Em "O Filho do Crucificado", o autor paulista Nelson de Oliveira usa o fantástico para compor seis narrativas sobre a morte

Arremessa Teu Raio até a Morte

Um estrondo. Um tremor.
Silêncio, em seguida.
Fechei o registro do chuveiro para poder ouvir melhor.
Nada. Nem estrondo nem tremor. Apenas um pinga-pinga insistente. O mesmo pinga-pinga ininterrupto, diário, impossível de ser estancado por mais força que pusesse ao fechar o registro.
Saí do banho enrolado na toalha. Um bode berrou na varanda.
Procurei com os dedos, dentro da neblina que me acompanhara do banheiro ao quarto, meus óculos. Não estavam em cima da cômoda. Não estavam em parte alguma.
Nem os óculos nem os livros sobre os quais eu os havia deixado.
O bode berrou novamente.
A porta, um pouco aberta. Alguém estivera no meu quarto, sem minha permissão.
Farejei o ar. Cheiro de cigarro. Alguém estivera no meu quarto recentemente. Na certa enquanto eu tomava banho.
- Vagabunda.
Vesti a tanga, calcei os chinelos, coloquei a máscara e ao sair, blam, bati a porta com violência.
O eco ricocheteou nas paredes do corredor, desceu as escadas e morreu, estrangulado, em algum lugar lá embaixo. Morreu com o próprio grito atravessado na garganta.
Chutei a porta do quarto de Matilda:
- Que é que você foi xeretar no meu quarto?
Para minha surpresa ela estava descalça e sem a máscara.
Enrubesci. Matilda enrubesceu.
Dei-lhe as costas, constrangido. Dei-lhe as costas, mas não saí do quarto. Queria uma satisfação. O constrangimento devagar deu lugar à ira. Gritei:
- Desembucha. Que é que você foi xeretar no meu quarto?
- Quê? Você ficou louco? Não entrei no teu quarto.
- Então como é que você me explica isto?
Virei-me de maneira dramática, mirando-a nos olhos. Matilda felizmente já havia se vestido.
Estendi-lhe a mão fechada, o braço rijo.
Ela deu um pulinho para trás, de susto, crendo estar prestes a ser agredida. Depois cerrou os punhos e se preparou para a luta:
- Explicar o quê, seu babaca? Quer levar um soco nas fuças?
O bode berrou novamente.
Abri a mão e mostrei-lhe seu conteúdo: uma pequena pluma azul. Um delicado floco desgarrado, idêntico aos outros que enfeitavam sua máscara e sua tanga.
As tetas de Matilda deram um pinote, como se tivessem tomado um beliscão. Imediatamente se recompuseram.
Ela se defendeu:
- Não tenho nada que explicar.
- Como não? Encontrei isto em cima da minha cama!
- Vá à merda, está bem? Saia já daqui.
- Vagabunda!
- Não me chama de vagabunda.
- Cadê meus óculos?
- Ficou louco? Por que eu pegaria teus óculos?
- Vagabunda. Já te disse mil vezes pra não entrar no meu quarto sem meu consentimento.
- Por que tanto palavrão por causa de uns óculos? Você nem sequer precisa de óculos. Seus olhos são perfeitos, seu merdinha.
Matilda não estava fumando. Sinal de que devia ter fumado minutos antes. Por isso o cheiro de cigarro no meu quarto.
Peguei o maço de cigarros de cima da cômoda e o atirei pela janela. Os cigarros, durante a queda, espalharam-se pelo ar, rodopiaram e foram em frente, cada vez mais distantes uns dos outros, enquanto caíam.
Matilda ficou enlouquecida:
- Desgraçado!!!!!!!!!
Tanta exclamação me deixou petrificado.
- Por que você fez isso? Eu não peguei teus óculos, eu não peguei teus livros, caramba! Eu não sei ler, você não sabe ler, ninguém, num raio de 200 quilômetros, sabe ler!
- Que importa isso? Meus livros têm figuras, sua anta! Figuras, entendeu?
O bode berrou novamente.
Minha irmã e eu nos engalfinhamos. Mãos nas mãos. Olhos nos olhos. Atracados.
- Vagabunda!
- Filho da puta!
Ela, por fim, encerrando a discussão, mordeu-me no ombro.
Uivei, misturando minha voz com a do bode, que, na varanda, não parava mais de berrar.
Alguém no quintal gritou:
- Maldita campainha! Atendam à porta, pô!
Saí do quarto de Matilda jurando aos céus vingança.
O senhor Vivaldi, que vinha, todo pele e pêlos, pelo corredor -sem dúvida nenhuma um dos homens mais pálidos da face da Terra- ao ver a marca da dentada no meu ombro exultou:
- Belíssimo! Na boca, as fileiras dos dentes são como muralhas de uma fortaleza. A marca dos dentes na carne é o símbolo de uma perigosa agressão dos instintos: desejo, luxúria, possessão. É, antes de mais nada, o sinal que indica ânsia de grandes conquistas carnais.
- Muito gentil da sua parte me dizer palavras tão bonitas, senhor Vivaldi. A boca. Os dentes. Pena que a dor seja insuportável.
O bode gemeu mais uma vez.
Vovó Viviana dirigiu sua cadeira de rodas elétrica até a porta da frente, abriu-a e, por alguns segundos, não fez mais nada.
Não tirou a mão da maçaneta, não disse: "Pois não?", não chamou ninguém do hotel. Não fez mais nada.
Apenas continuou ali, parada, equilibrando a piteira de ouro no canto da boca, olhando para fora, para o corpo retesado do assassino, para os olhos flamejantes do assassino, para o assassino.
Ele, o assassino, por sua vez se sentiu intimidado por aqueles olhos paleolíticos, cristalizados. Sentiu-se como se estivesse olhando para um fóssil recém-desenterrado, frio e arenoso.
- Vovó, quem é? -indagou uma voz que vinha da cozinha.
Máscara diante de máscara. A de vovó Viviana era oval e lilás, com lantejoulas sobre as sobrancelhas e arabescos azuis em torno dos olhos e da boca. A do assassino era retangular e cinza, sem nenhum detalhe que chamasse a atenção, sem nenhum ornamento.
- Quem é, vovó? -a mesma voz, agora mais forte.
- Vovó Viviana?
O assassino proferiu estas palavras sem querer, impulsionado sabe-se lá por quê. Endereçou-as mais a si mesmo do que à velha.
- Quem é, vovó?
Vânia veio ver o que é que estava acontecendo. Veio, da cozinha, ver por que é que vovó Viviana não voltava para o fogão, para o arroz, para a sardinha, para o alho, para a cebola, para o sal.
O assassino, ao ver Vânia, sentiu-se desfalecer. Faltou-lhe ar. Faltou-lhe a fala. O cigarro aceso, entre os dedos trêmulos, caiu no capacho.
Mas ele, mesmo sem fala, falou:
-Vânia? É mesmo você?
Vovó, voltando a si, com um gesto rápido e medido moveu a cadeira dez centímetros para a frente e passou com uma roda em cima da bituca, antes que esta viesse a provocar um incêndio.
- É mesmo você, Vânia?
Vânia, as pernas bambas, para não cair no chão apoiou-se na cadeira da avó.
Procurou no bolso do avental o maço de Hollywood. No maço procurou um cigarro. Atrapalhou-se com os próprios dedos, longos e agitados. O maço caiu, os cigarros caíram. Agachou-se para pegá-los e acabou batendo a testa no corrimão da escada.
Vânia começou a soluçar:
- Lucas... Lucas...
Chorava convulsivamente:
- Luuu... cas... Luuu...
Resposta certa. Era ele mesmo, só que bem mais velho, bem mais cansado. O corpo mais encurvado depois do assassinato, o rosto mais vincado pelos dissabores, os olhos mais fundos, mais opacos, o cabelo mais ralo e grisalho, os chinelos mais gastos.
Vânia abraçou-o e ambos abraçaram vovó, cobrindo-a com seus corpos, transformando a cadeira de rodas num iglu de lágrimas.
Evitei descer a escada. Não queria me encontrar com ele.
Com o assassino.
Fui até a sacada que havia no final do corredor e apoiei-me no peitoril. Dois andares me separavam do solo.



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