São Paulo, sábado, 02 de junho de 2001

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Dois Irmãos

Dessa vez ninguém havia caluniado meu pai como das vezes passadas. Dessa vez ele realmente havia feito um grande mal. Por isso acabou sendo detido, antes mesmo que chegasse em casa, que contasse tudo a vovô, a mim.
Meu pai.
Dois meses depois subi correndo a escada. Cada degrau fez um som diferente. A casa cheirava a madeira podre, umidade, naftalina e perfume de rosas. Quase sem fôlego, entrei no corredor escuro e continuei a correr. Pensei que estivesse fugindo por um beco longo e perigoso, mas em nenhum momento escutei o som de passos no meu encalço. Entrei no quarto onde um lampião ardia muito baixo e as cortinas ondulavam. Entrei e fechei a porta com cuidado. O assoalho só parou de ranger quando eu parei para respirar.
Deitei no chão encerado, rolei para debaixo da cama e não soltei um pio. Apenas um bocejo. Os olhos querendo fechar, como se vissem bolhas de sabão dentro da noite. Um relincho do outro lado da colina, o chiado da lua caindo dentro do lago, o alvoroço dos porcos. Para espantar o sono, acompanhei com a unha as ranhuras do assoalho. Contei os dedos das mãos duas vezes -a certeza de que estavam todos ali não me deixou nem um pouco satisfeito.
Vovó entrou no quarto, ajoelhou-se no tapete manchado, esticou o braço embaixo da cama e me pegou pela orelha:
- Saia já daí. Isso são modos?
- Eu não quero ir. Eu não vou.
- Comporte-se. Não torne as coisas pior.
Vovó era alta e corpulenta, com peitos e barriga salientes, pernas grossas e tornozelos sempre inchados. Nessa noite ela usava um vestido azul que cheirava a guarda-roupa e um colar discreto, também azul. Enquanto me arrastava escada abaixo, vi que se esquecera de trocar os sapatos de lona, que estavam duros de lama e cheios de buracos.
A sala de visitas não havia mudado nada durante minha breve ausência. A bandeja, o bule e as xícaras continuavam na mesa de centro, que por sua vez continuava sobre o tapete marrom. As cadeiras de espaldar curvo, estofadas, com panos bordados pendendo dos encostos, continuavam ao redor da mesa de centro. Os retratos de família e os pratos de porcelana continuavam nas paredes. No fundo da sala, o vaso com samambaias, bem como o piano de cauda, continuava no mesmo lugar. Vovô continuava sentado no sofá de três lugares e o oficial de justiça ainda estava ao seu lado, as pernas cruzadas. O inimigo continuava de pé, ao lado do sofá, os olhos não mais abaixados, mas agora pregados na escada por onde vovó e eu descíamos.
Vovô, logo que me viu, foi imperativo:
- Daniel, sente-se aqui comigo. Antes, cumprimente Muhammad.
O inimigo tinha a minha idade, a minha estatura, os meus olhos castanhos. Sua pele era bem mais escura do que a minha, mas e daí? Em pouco tempo, vivendo na mesma casa, comendo a mesma comida, recebendo as mesmas atenções de vovô e vovó, de tio Moisés e tia Sara, acabaríamos tão parecidos um com o outro que ninguém mais saberia dizer quem era quem. "Quando isso finalmente acontecer o que o impedirá de pegar todos os meus brinquedos, todas as minha roupas?", pensei.
- Nada -eu mesmo respondi o mais alto que pude, antes de me safar de vovó e tornar a subir a escada.
Corri pelo corredor, aos tropeções, quando na verdade queria era estar correndo pelo quintal, pelo pomar, escorregando pelo declive forrado de arbustos, esfolando os joelhos e mergulhando na parte rasa do rio. Longe, muito longe de todos, da casa, do oficial de justiça e do inimigo que chegara sem avisar. Corri pelo corredor e me meti mais uma vez embaixo da minha cama -o rio, o declive e o pomar completamente fora do meu alcance.
Quieto, lembrei-me do pomar e dos pêssegos, e de como Jacó e eu entrávamos escondidos na cozinha, pegávamos todos os pêssegos da fruteira e saíamos estrepitosamente antes que vovó nos agarrasse pelo colarinho. Lembrei-me dos pêssegos, da cozinha, de vovó preparando o almoço de domingo, de Jacó no galho mais alto da mangueira, os braços bem abertos: "Veja, Daniel. Que tal voarmos daqui até o celeiro?", os braços feito asas, o vento na direção certa, Jacó entre as nuvens, no chão, um fio de sangue escorrendo-lhe do nariz.
A porta do quarto, que eu havia apenas encostado, abriu-se completamente e um par de sapatos puídos como os meus parou ao lado da cama, bem em frente de onde eu estava. A casa prendeu a respiração. O inimigo me farejava. Como eu não me movesse, ele se ajoelhou e num minuto estava ao meu lado, os dois deitados no assoalho, feito caubóis de tocaia -silêncio, pode haver comanches!-, tendo o estrado de cerejeira como único firmamento.
Dessa noite em diante nos tornamos irmãos. Não porque eu quisesse, mas porque a lei assim ordenava. O oficial de justiça apertou a mão de vovô, de vovó e até a minha, disse adeus ao menino de pele escura, o único inimigo de verdade que tive na vida, e se foi. Na mesa de centro, ao lado da bandeja de prata, a pasta de documentos que oficializava tudo. Éramos irmãos -tão gêmeos quanto um dia Jacó e eu havíamos sido.
Ana Maria, a única mulher que amei na vida, quis mais detalhes:
- Por que seus avós adotaram o menino?
- Porque tinha que ser.
- Não fala bobagem. Nada é porque tem que ser.
- Porque... Em pouco tempo me acostumei com a presença dele dentro de casa, e isso pra mim já era suficiente. Não fiquei fazendo perguntas. As coisas eram porque tinham que ser. Por quê? Que sei eu? Talvez porque Jacó estivesse morto, e alguém tinha que tomar o seu lugar.
- Você está mentindo.
- Não estou. Que motivo eu teria pra...
- Está. E descaradamente. Que foi que teus avós te disseram? Por que Muhammad foi viver com vocês?
Ana Maria não sabia, mas já estava enlouquecida de amor pelo sujeito que se fazia passar por meu irmão -isso há vários meses. Ela o desejava mesmo sem sequer conhecê-lo, o que aumentava ainda mais o meu ódio. Em pensamento eu os via fugindo de mim, de mãos dadas, alegres por acharem que me fazer de idiota era só uma brincadeira inocente. À noite, na cama, eu fechava os olhos e os via se beijando e estendendo uma toalha num gramado perfeito, sem bosta de vaca nem ervas-daninhas. Não adiantava me levantar e ir até a cozinha. De onde quer que eu estivesse eu os via rindo e fazendo amor na toalha mais incrível que eu jamais vira, estendida num gramado de sonho.
- Como foi que Jacó abriu as asas? Assim?
Conheci Ana Maria na festa de casamento de um amigo comum. Ela havia subido na mesa, derrubado o bolo e caído com estardalhaço em cima de alguns convidados, na tentativa de pegar o buquê que a noiva, de acordo com a tradição, desprezara. Agora ela está aqui, sentada no parapeito da janela, os braços abertos feito o anjo que de fato é:
- Se ele soubesse as coisas que eu sei... Como, por exemplo, voar de verdade, não teria se esborrachado.
- Pára com isso. Não gosto quando você brinca assim.
- Esse é o seu problema: você não tem senso de humor. Leva tudo muito a sério. Menos o que realmente deveria ser levado a sério. Não estou brincando. Sei andar de bicicleta, dirigir um carro e até voar.
- Desce daí, por favor.
- Então fala a verdade.
- Desce.
- Só se você repetir: "Ana Maria sabe voar".
- Ana Maria sabe voar. Agora pára com a brincadeira.
- Ainda não. Fala a verdade sobre Muhammad. Estou curiosa pra saber.
- Muhammad. Sempre Muhammad... Você me cansa com essa história.



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