São Paulo, sábado, 02 de junho de 2001

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Autor retrata "extinção pura e simples"

RODRIGO MOURA
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma multidão despenca de um prédio em uma cidade perdida -uma São Paulo imaginada. Do 16º ao chão duro, "Nada do que É Humano me É Alheio". Trata-se de um dos cinco contos de "O Filho do Crucificado", o quinto título adulto do escritor Nelson de Oliveira, 34.
No texto, a metáfora do suicídio coletivo serve de tinta para pintar o quadro de uma metrópole onde as vozes se confundem. Uma "textura", no dizer de seu autor, onde nenhum sujeito pode ser privilegiado no caos da cidade.
Nas seis narrativas da obra, que será lançada pela Ateliê Editorial este mês, o fantástico e o absurdo se entrelaçam nos contos mais uma novela, de nome idêntico ao do livro. Em todos os textos, uma só idéia, desdobrada em aspecto caleidoscópico: o fim dos tempos.
"Para esse termo, você encontra milhões de acepções possíveis. Pode ser uma coisa concreta, por exemplo um apagão, ou o final da narrativa como a gente a conhece até então", define este paulista de Guaíra que há mais de dez anos se encontra instalado na cidade que alimenta contos como este.
O que está em jogo para o autor nesse seu novo trabalho é a condição do homem diante da morte. "A extinção pura e simples. Sem razão alguma."
No apartamento em que trabalha, numa rua secundária do bairro de Perdizes, onde falou à Folha, Nelson de Oliveira passa em média duas horas por dia, não mais, sem feriados e "religiosamente", detido em escrever seus textos. No restante de seu tempo útil, é diretor de arte de uma editora de livros infantis.
Pavimentou sua trajetória literária com os contos de "Os Saltitantes Seres da Lua" (97), "Naquela Época Tínhamos um Gato" (98) e "Treze" (99) e o romance "Subsolo Infinito" (2000), todos amplamente comentados pelos resenhistas atentos ao novo na cena literária nacional. Traz na algibeira ainda os infantis "Quem É Quem Nesse Vaivém" e "O Leão que Achava que Era Domador".
"O Filho do Crucificado", nesse caminho, significa o que Nelson de Oliveira considera, "com orgulho", o ponto de síntese. "Tudo o que fiz antes", diz, "converge, curiosamente, para narrativas em forma de paródia".
O garoto religioso do interior acerta contas com a Bíblia, parodiando escrituras sagradas e apócrifas, às quais soma referências da literatura moderna. Kafka convive com o Apocalipse. "Aquilo está tão entranhado que a gente só pode ruminar vida afora."
Ponto-chave desse processo é a novela homônima ao livro, que fecha o volume, na qual retoma dogmas bíblicos como o corpo de Cristo. O dito, nessa noveleta de 62 páginas, teria tido um filho, Jeremias, com uma prostituta, primeiro chamada Maria Madalena, depois Ana Maria.
Um dos capítulos da narrativa, "Ana Maria dos Espíritos", começa assim: "Hoje mamãe morreu", como "O Estrangeiro" (1940), de Albert Camus.
Buscando na Bíblia o que se poderia chamar, ironicamente, de inspiração divina, o escritor, hoje "ateu convicto", se atém a não moralizar os entrechos de suas histórias, mais ricas em imagística do que em conclusões morais. "Não quero nada mais que pôr as peças no tabuleiro", confirma.
Em um outro conto como "Quantos?", uma verdadeira maratona sexual é narrada, na primeira pessoa, por uma mulher que após acolher em seu leito dezenas (mais?) de parceiros culmina a relação num contato íntimo com ninguém menos que Ele.
Mas, como diz a própria narradora, "só pode ter sido uma alucinação, certo?". Resta a dúvida. Pelo sim, pelo não, ela termina o conto disposta a se tornar apresentadora de um programa de TV. Fim dos tempos?
"Bater no liquidificador." É assim que o autor denomina o expediente que sustenta essa prosa alucinatória, na qual o fluxo de referências pós-modernista se encontra com a tradição do realismo mágico latino-americano. "Tomar o bonde de Borges, mas, se não houver jogo de renovação da linguagem, não me interessa."
O universo do misticismo cristão que serve de esteio para "O Filho do Crucificado" serviu também para Murilo Rubião e José J. Veiga, referências caras ao autor junto ao surrealismo "fora do lugar" de Campos de Carvalho -uma trilha da pouco linear tradição fantástica no Brasil.
De Rubião, há reflexos notáveis em "Arremessa Teu Raio até a Morte", conto que abre o livro, reconhecidos por Oliveira no clima fantástico e na tipologia dos personagens, "engraçados".
"Acho que há um certo lirismo que nos une."

A OBRA

Livro: O Filho do Crucificado
Autor: Nelson de Oliveira
Editora: Ateliê Editorial
Quanto: preço indefinido (173 págs.)



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