São Paulo, quarta-feira, 02 de junho de 2004

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ARTES PLÁSTICAS

Em retrospectiva, Museu Judaico de Nova York tenta desvincular artista italiano de sua imagem de boêmio

Exposição redesenha mitos de Modigliani

Divulgação
"Jeanne Hebuterne", pintura de Modigliani que está na retrospectiva do artista no Museu Judaico de Nova York


RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

Há uns dez dias, no Museu Judaico de Nova York, era gente para todo lado. Na fila, para assistir à exposição de Modigliani -ela dobrava a esquina meia hora antes da abertura dos portões, quando a reportagem da Folha chegou ao local, numa manhã quente de domingo-, e, lá dentro, nas telas do pintor.
É essa "preocupação singular" do italiano Amedeo Modigliani (1884-1920) com os retratos que a exposição "Além do Mito" -até setembro no encontro da Quinta avenida com a rua 92- pretende "repensar".
Num texto na parede de entrada da mostra, a primeira grande retrospectiva do artista nos últimos 50 anos em Nova York, o curador Mason Klein expõe a tese que motiva a reunião de cerca de cem trabalhos de Modigliani.
Em primeiro lugar, o que justifica o título da exposição, trata-se de desvincular as obras do "mito do artista boêmio, consolado por vinho e drogas", que viveu sob os efeitos da pobreza e de uma saúde cronicamente frágil.
A outra pretensão é, ao contrário, vincular a "ambigüidade da identidade", uma obsessão do artista -o encontro e o conflito do que há de universal na figura humana com a individualidade de cada pessoa retratada-, com sua condição de judeu em Paris no início do século 20.
Segundo Klein, Modigliani viveu "a experiência única do anonimato étnico", por ser mais identificado como italiano do que como judeu. Ao mesmo tempo, escreve o curador, o artista fazia questão de se apresentar como tal quando via sinais de anti-semitismo em seus interlocutores.
A primeira é fácil. As turbulências da vida parecem todas domadas quando se está diante de um quadro como o de "Paulette Jourdain". Os cabelos pretos, elegantemente presos, a figura alongada -marca do estilo de Modigliani-, as mãos unidas, repousadas sobre o vestido escuro. O laranja do fundo dá leveza ao conjunto.
Como em muitas obras do pintor, há serenidade e sobriedade na sra. Jourdain. O alongado das figuras lhes dá um ar aristocrático, mas nunca opulento. Os vestidos ou os ternos são sempre muito simples e elegantes, o retrato é completamente concentrado na pessoa, não há objetos que elas possam possuir representados -é como se fosse preciso ser pobre para ser verdadeiramente aristocrático.
"Jeanne Hebuterne", também na exposição, usa uma camisa regata. Podemos ver o sovaco da moça, que apoia um dedo contra a bochecha -há um ar "mediterrâneo" nisso, como na mistura de frescor e solenidade presente numa refeição entre italianos.
A segunda parte da tese da exposição é iluminadora quando ajuda a entender o conflito entre universalidade e identidade nas figuras retratadas. Ficamos sabendo que o fato de ter começado como escultor, antes de pintor, "encorajou" Modigliani "a usar a linguagem universal da geometria para as necessidades específicas da pintura" -e há aí, na decomposição da imagem em formas geométricas, algum parentesco artístico com seus contemporâneos cubistas.
"Dentro de sua universalidade [da geometria], o artista apresenta a personalidade única do indivíduo", está dito, numa das paredes do museu. E quem há de discordar que há um traço de pedra na sobriedade dos rostos pintados por ele?
Para o curador, essa "ambigüidade da identidade" nos retratos de pessoas com olhos vazados, inteiramente azuis ou cinzas, espelha a "não reconhecida, mas indelével, herança judaica" do artista.
Parece provável e é coerente com certa crítica americana que parte da condição étnica ou de gênero do autor para compreender a obra. Mas talvez falhe ao não conseguir fazer o que o próprio Modigliani realizou, ou seja, conjugar identidade e universalidade.


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