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MARCELO COELHO
Charge, cartum e caricatura
O carrasco apronta um
novo instrumento de tortura. Pendurado pelos braços, o preso se apavora e resolve admitir:
"O rei estava vestido!".
Foi com essa charge que Laerte
ganhou, em 1974, o prêmio do primeiro Salão de Humor de Piracicaba. O Salão comemora três décadas de existência com uma
mostra no Memorial da América
Latina e com um livro, editado
pela Imprensa Oficial, que reproduz os trabalhos vencedores de
cada ano. Entre charges, cartuns,
caricaturas (e até histórias em
quadrinhos, a partir de 1990), vemos os primeiros passos de artistas hoje consagrados, como Angeli, Chico Caruso e Glauco, entre
tantos outros.
Espantei-me também com o número de grandes talentos, vencedores em várias edições do evento, que, para mim pelo menos,
eram desconhecidos. Entre os caricaturistas, em especial, há artistas de sobra. Atingem tamanho
virtuosismo -veja-se o retrato de
Chico Buarque por Dalcio Machado, reproduzido na capa do livro- que até fiquei desconfiado.
Talvez não seja uma arte tão difícil quanto parece...
Digo isso por pura inveja. Caricaturas espetaculares me dão a
impressão de não terem sido desenhadas por mãos humanas -e
tampouco me parecem humanos
os olhos de quem as fez. Ao mesmo tempo, a caricatura talvez seja um dos últimos lugares em que
a arte acadêmica -o culto à parecença física, a exibição da habilidade técnica, a obediência a determinados "macetes" escolares- ainda floresce.
Uma coisa eu estranhei, ao folhear o livro. Esperava que um retrospecto de 30 anos de charges
premiadas viesse a constituir um
panorama razoável dos últimos
acontecimentos da história do
Brasil. Mas não é bem isso o que
acontece.
Sem dúvida, acompanhamos o
processo de abertura. Em seus primeiros anos, o Salão de Piracicaba também foi um instrumento
da redemocratização, e é fácil notar o quanto o humor daquelas
charges com militares e prisões se
alimentava da simples sensação
de alívio que uma piada, mesmo
ingênua, pode propiciar em épocas tensas como aquelas.
A partir dos anos 80, os trabalhos premiados se descolam da
conjuntura política. Mesmo alguns temas que marcaram o cotidiano das últimas décadas, como
a inflação, estão curiosamente
ausentes. O movimento das diretas e o impeachment de Collor; figuras como Tancredo, Ulisses, PC
Farias; os massacres de Carajás
ou do Carandiru; os desmandos
de Reagan e de Bush, a queda do
Muro de Berlim -todas as coisas, enfim, que a charge diária
nos jornais aproveita como tema
não parecem ter resistido à triagem desse livro.
Os temas são, em geral, muito
abstratos: repressão e censura,
nos primeiros anos; mais tarde, a
ecologia, a fome e o poder da televisão é que concentram, de longe,
a preferência dos premiados.
Mesmo assuntos igualmente
atemporais, como tecnologia, sexo, religião e guerra, não aparecem com especial freqüência.
Claro, não se trata de uma
amostra panorâmica do que foi
publicado na imprensa ao longo
destes 30 anos; a premiação num
concurso anual envolve escolhas e
critérios que não são da mesma
natureza que a de uma pauta jornalística.
O gênero do cartum é o que
mais funciona nessas ocasiões. Ao
contrário da charge política, baseada nos fatos imediatos e nas
crispações da conjuntura, o cartum ocupa um lugar mais clássico, abstrato, intemporal.
De sunga vermelha, um rei está
nadando; vemos sua coroa e sua
enorme barriga de perfil. Debaixo
d'água, com máscara de mergulhador, o bobo da corte desenrola
o tapete vermelho sobre o leito do
rio. O cartum do belga Luc Descheemaeker venceu o Salão de
2001, como poderia ter vencido o
de 1991 ou de 1981. Trata-se, na
arte do cartum, de lidar com uma
espécie de ironia essencial das coisas, que dispensa o tempo e o lugar.
Menos do que com a política, a
graça é feita aqui com a Autoridade. Um antigo cartum de Fortuna mostrava um funcionário
de joelhos, com o rosto no chão,
diante da mesa de seu chefe. O
chefe lhe perguntava: "O que o senhor procura?"; e o funcionário
respondia: "Uma reverência".
É nas épocas de maior repressão
que a política se reveste da forma
arcaica, genérica e impessoal do
Poder, da Autoridade. Nesses momentos, a linguagem mais abstrata do cartum se politiza, e um Rei,
um Padre, um Torturador, um
Agente Secreto, um Palhaço passam a valer, em suas afrontas
imemoriais, como charge atual e
precisa.
São desse tipo os trabalhos selecionados nos primeiros salões de
Piracicaba. O que dá margem a
efeitos curiosos, aliás: numa época em que a Igreja Católica se
aliava majoritariamente às lutas
da oposição, padres e bispos ainda surgem como vilões em diversas obras premiadas.
Continuo sentindo falta, portanto, de um livro que contasse a
história dos últimos 30 anos numa seleção de charges; as do Salão de Humor só em parte cumprem esse objetivo.
Um último parágrafo. Queria
ver como a caricatura entra nesse
esquema. Se, comparado à charge, o cartum ruma para a abstração, substituindo o político Fulano pela imagem da Autoridade
em si, é como se a caricatura fosse
na direção inversa, procurando o
hiper-específico, o extremo mais
inconfundível de um indivíduo
só. Os dentes de um, a orelha de
outro conduzem a caricatura a
um mundo em que toda abstração seria impossível -e no qual
cada indivíduo deixa de ser
exemplo de sua espécie para se
tornar um bicho sem igual, fruto
de uma condição biológica irreproduzível, de tão específica, de
tão concreta. Mas o que vai ficando abstrato é este artigo; paro por
aqui, antes de perder totalmente
a graça.
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