São Paulo, quarta-feira, 02 de junho de 2004

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MARCELO COELHO

Charge, cartum e caricatura

O carrasco apronta um novo instrumento de tortura. Pendurado pelos braços, o preso se apavora e resolve admitir: "O rei estava vestido!".
Foi com essa charge que Laerte ganhou, em 1974, o prêmio do primeiro Salão de Humor de Piracicaba. O Salão comemora três décadas de existência com uma mostra no Memorial da América Latina e com um livro, editado pela Imprensa Oficial, que reproduz os trabalhos vencedores de cada ano. Entre charges, cartuns, caricaturas (e até histórias em quadrinhos, a partir de 1990), vemos os primeiros passos de artistas hoje consagrados, como Angeli, Chico Caruso e Glauco, entre tantos outros.
Espantei-me também com o número de grandes talentos, vencedores em várias edições do evento, que, para mim pelo menos, eram desconhecidos. Entre os caricaturistas, em especial, há artistas de sobra. Atingem tamanho virtuosismo -veja-se o retrato de Chico Buarque por Dalcio Machado, reproduzido na capa do livro- que até fiquei desconfiado. Talvez não seja uma arte tão difícil quanto parece...
Digo isso por pura inveja. Caricaturas espetaculares me dão a impressão de não terem sido desenhadas por mãos humanas -e tampouco me parecem humanos os olhos de quem as fez. Ao mesmo tempo, a caricatura talvez seja um dos últimos lugares em que a arte acadêmica -o culto à parecença física, a exibição da habilidade técnica, a obediência a determinados "macetes" escolares- ainda floresce.
Uma coisa eu estranhei, ao folhear o livro. Esperava que um retrospecto de 30 anos de charges premiadas viesse a constituir um panorama razoável dos últimos acontecimentos da história do Brasil. Mas não é bem isso o que acontece.
Sem dúvida, acompanhamos o processo de abertura. Em seus primeiros anos, o Salão de Piracicaba também foi um instrumento da redemocratização, e é fácil notar o quanto o humor daquelas charges com militares e prisões se alimentava da simples sensação de alívio que uma piada, mesmo ingênua, pode propiciar em épocas tensas como aquelas.
A partir dos anos 80, os trabalhos premiados se descolam da conjuntura política. Mesmo alguns temas que marcaram o cotidiano das últimas décadas, como a inflação, estão curiosamente ausentes. O movimento das diretas e o impeachment de Collor; figuras como Tancredo, Ulisses, PC Farias; os massacres de Carajás ou do Carandiru; os desmandos de Reagan e de Bush, a queda do Muro de Berlim -todas as coisas, enfim, que a charge diária nos jornais aproveita como tema não parecem ter resistido à triagem desse livro.
Os temas são, em geral, muito abstratos: repressão e censura, nos primeiros anos; mais tarde, a ecologia, a fome e o poder da televisão é que concentram, de longe, a preferência dos premiados. Mesmo assuntos igualmente atemporais, como tecnologia, sexo, religião e guerra, não aparecem com especial freqüência.
Claro, não se trata de uma amostra panorâmica do que foi publicado na imprensa ao longo destes 30 anos; a premiação num concurso anual envolve escolhas e critérios que não são da mesma natureza que a de uma pauta jornalística.
O gênero do cartum é o que mais funciona nessas ocasiões. Ao contrário da charge política, baseada nos fatos imediatos e nas crispações da conjuntura, o cartum ocupa um lugar mais clássico, abstrato, intemporal.
De sunga vermelha, um rei está nadando; vemos sua coroa e sua enorme barriga de perfil. Debaixo d'água, com máscara de mergulhador, o bobo da corte desenrola o tapete vermelho sobre o leito do rio. O cartum do belga Luc Descheemaeker venceu o Salão de 2001, como poderia ter vencido o de 1991 ou de 1981. Trata-se, na arte do cartum, de lidar com uma espécie de ironia essencial das coisas, que dispensa o tempo e o lugar.
Menos do que com a política, a graça é feita aqui com a Autoridade. Um antigo cartum de Fortuna mostrava um funcionário de joelhos, com o rosto no chão, diante da mesa de seu chefe. O chefe lhe perguntava: "O que o senhor procura?"; e o funcionário respondia: "Uma reverência".
É nas épocas de maior repressão que a política se reveste da forma arcaica, genérica e impessoal do Poder, da Autoridade. Nesses momentos, a linguagem mais abstrata do cartum se politiza, e um Rei, um Padre, um Torturador, um Agente Secreto, um Palhaço passam a valer, em suas afrontas imemoriais, como charge atual e precisa.
São desse tipo os trabalhos selecionados nos primeiros salões de Piracicaba. O que dá margem a efeitos curiosos, aliás: numa época em que a Igreja Católica se aliava majoritariamente às lutas da oposição, padres e bispos ainda surgem como vilões em diversas obras premiadas.
Continuo sentindo falta, portanto, de um livro que contasse a história dos últimos 30 anos numa seleção de charges; as do Salão de Humor só em parte cumprem esse objetivo.
Um último parágrafo. Queria ver como a caricatura entra nesse esquema. Se, comparado à charge, o cartum ruma para a abstração, substituindo o político Fulano pela imagem da Autoridade em si, é como se a caricatura fosse na direção inversa, procurando o hiper-específico, o extremo mais inconfundível de um indivíduo só. Os dentes de um, a orelha de outro conduzem a caricatura a um mundo em que toda abstração seria impossível -e no qual cada indivíduo deixa de ser exemplo de sua espécie para se tornar um bicho sem igual, fruto de uma condição biológica irreproduzível, de tão específica, de tão concreta. Mas o que vai ficando abstrato é este artigo; paro por aqui, antes de perder totalmente a graça.


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