São Paulo, terça, 2 de junho de 1998

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No Brasil de hoje só rolam "desacontecimentos'

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Uma vez escrevi sobre os "desacontecimentos". Volto hoje. Se alguma coisa marca o país, hoje, são os "desacontecimentos". Isto ficou mais claro depois que passei dois meses em Nova York. No mundo lá fora, as coisas acontecem; aqui, giram no mesmo lugar.
Lá, explodem as bombas da Índia, descobrem planetas e galáxias; aqui, não conseguem nem cassar o Pedrinho Abraão. Lá, as coisas vingam; aqui, murcham logo depois de uma bruta florescência.
Já passei por muita coisa. Já vivi épocas com cores mais vivas. O pré-64 eu diria que era vermelho, não só pelas bandeiras do socialismo, mas pelo sangue vivo que nos animava a construir um país, romanticamente. Era ilusão? Era. Mas tinha o gosto de vida.
Já passei por períodos como a ditadura de 64, aquele verde-oliva que nos cercou como uma epidemia de vil patriotismo, aquele fascismozinho caboclo, tecido pela mais idiota classe média e pelos ideais cívicos mais vagabundos. Era terrível? Sim. Mas nos dava o "frisson" de sermos "vítimas", enobrecidos pelas porradas da história nas costas.
Já vi momentos negros durante a repressão dos anos 70, com os mortos se empilhando, passei pelo céu cor de laranja com marmelada da contra-cultura, pelos depressivos anos cinzentos de Sarney, passei pelos rostos amarelos e verdes do impeachment, pelo azul da esperança do Plano Real. E hoje? Qual é a cor de nosso tempo? Cor-de-burro-quando-foge. É a cor morta dos "des-acontecimentos".
A pós-modernidade (arrghh!) no Brasil não tem o gosto cínico de um tempo cru; apenas virou uma grande sopa fria. Uma sopa sem sal, dois pregos se anulando pela ponta, uma cobra mordendo o próprio rabo, um círculo vicioso, um beco sem saída, um bode preto, uma galinha morta, um nada depressivo... (Sim, leitor, deixai toda esperança fora, porque este é um artigo deprimido, confuso e torto).
Nas notícias de jornal, vejo um mesmo tema: as coisas que "não" aconteceram: "não" termina a greve, "não" puniram os responsáveis, "não" conseguiram isso nem aquilo. Nossas notícias são narrativas de fracassos. O discurso do presidente, tentando corrigir a queda de prestígio, foi feito na base do "não posso fazer tudo", "não deu pé".
É espantoso como um governo, querendo mexer em nossa secular estrutura ibérica, ignora o povo e não o informa desta difícil tarefa, com a pior comunicação social da história, deixando o projeto a mercê dos manipuladores da ignorância... Como isso pode acontecer? O presidente no meio do capim, com aquele pulpitozinho abandonado, feito um náufrago no Alvorada? Não dá para acreditar.
O próprio lema do governo, a "utopia possível", deita suas influências sobre a sociedade toda. Perdemos as ridiculosas ilusões onipotentes e, no lugar, só ficaram realismos escangalhados como ferro velho inútil e baldio. As reformas ficaram no meio, detidas pela mais suja resistência dos velhos donos do poder. O populismo burocrático e corporativo, a burrice dos velhos "albaneses", o egoísmo, a corrupção, o clientelismo, o patrimonialismo das elites recusam-se a morrer, de mãos dadas.
A proposta de FHC de enfrentar a complexidade do mundo atual, aceitando-a e tentando combatê-la por dentro, é uma luta inglória, pois seus inimigos são: o simplismo, o charme luminoso das promessas utópicas, o maniqueísmo de fácil compreensão. É muito mais fácil usar o "não" do que o "sim".
E, no esforço de complexas alianças, os objetivos vão se estinguindo. O PDT virou o PFL do PT, e não sei se o Jader Barbalho comandando a campanha dos tucanos é mais ridículo do que a Benedita beijando a mão de Garotinho, sob o olhar velho do Brizola ao lado de sua futura vítima, o "sapo barbudo", que ele vai devorar de inveja.
Voltaram os indícios de que a história poderá se repetir, com o pêndulo entre populismo irracional e uma possível volta do fascismo caboclo. Os sinais estão no ar. FHC se recusando "modernamente" a ser populista e ficando apenas frio e ausente, sentado na "tele-ologia das reformas" que não vieram.
E o suspense internacional dos especuladores, nos olhando como lobos, para desvalorizar a moeda? E o desequilíbrio fiscal invencível? E os saques programados para a TV? E, em volta do marasmo político, o triunfo do "brega" fervilhando na cultura. O "brega", que tinha um sabor remoto de folclore urbano, de doce burrice tolerável, toma agora conta de tudo, do rabo de Carla Perez ao filho da Xuxa, ao Ratinho, à vitória massificada do "quanto pior melhor" dos evangélicos eletrônicos.
E a ausência da arte nova? Não há nada no ar. Houve filmes novos? Sim. Mas e a distribuição na mão dos gringos que riem do nosso "renascimento"? Já repararam que não temos moda? Não há mais moda. Não falo só de roupas, como aquelas esquizofrênicas mocréias que desfilaram no Phytoervas, falo da Moda geral, vento no peito, "zest", ânimo de viver, cor no rosto, bravata narcísica, tesão, ilusão, a adrenalina na alma.
Nem comunas, nem hippies, nem punk, nada. Somos uma sopa. E o sexo? Uma grande camisa de vênus encapotando nossos pintinhos, entre a Aids e o Viagra, revelando a massa imensa de brochas secretos! E as eternas colunas sociais, com os eternos sorrisos e as eternas pernas nuas e as velhas madames e as novas peruas se reproduzindo em série?
E os crimes, as balas perdidas, as revoltas nas prisões? E o "Titanic"? E o FMI? E o Zagallo? E o pau do Clinton? E a bomba de Krishna na Índia? E a Indonésia? E o Suharto numa boa, se aposentando? E os intelectuais sem discurso? E os precatórios impunes? E os banqueiros nos invadindo com "fusões e aquisições"? E o Bibi, o rei dos judeus? E a Madeleine Albright -a mocréia do apocalipse azul-turquesa sorrindo para o Bibi? E a tristeza do Arafat? E os juros do Ieltsin? E a dengue? E a peste? E a gripe espanhola? Como dizia Nelson: "Se o mundo acabar, não se perde absolutamente nada..." Olha, se eu fosse você, leitor irmão, eu não leria este meu artigo de hoje...



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