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RODAPÉ
O sinistro e seus duplos
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Nos 40 e 50, o escritor Haroldo Maranhão formou, com
o filósofo Benedito Nunes e com o
poeta Mário Faustino, uma tríade
de intelectuais cujas trajetórias
são marcantes na vida cultural
brasileira. Tendo como epicentro
Belém do Pará e, mais especificamente, o suplemento literário
criado por Maranhão na "Folha
do Norte", em 1946, a história desse grupo serve, por si só, para derrubar polaridades que opõem
centro e periferia, ou caricaturas
em que os Estados distantes dos
grandes pólos urbanos estão vocacionados para uma concepção
provinciana de mundo e, no caso
da literatura, para o regionalismo.
O fato, porém, é que durante
muito tempo Maranhão permaneceu à sombra do trabalho de
Nunes (referência obrigatória para estudiosos de Heidegger ou de
Clarice Lispector) e de Faustino
(em que pese a morte precoce do
poeta piauiense, num acidente aéreo em 1962).
Só recentemente sua obra, antes
dispersa, começou a ser publicada
de forma sistemática pela editora
Planeta. Mas Maranhão não teve
tempo de desfrutar esse reconhecimento: morreu no ano passado,
pouco depois da reedição do romance "Memorial do Fim" -irônica coincidência para um autor
assombrado pela idéia da morte e
da insignificância das criaturas.
O segundo lançamento, dentro
desse projeto editorial, é a antologia "Feias, Quase Cabeludas".
Com seleção de Benedito Nunes e
organização do crítico da Folha
Marcelo Pen, o volume reúne textos de livros como "A Estranha
Xícara" (1968), "Vôo de Galinha"
(1978), "A Morte de Haroldo Maranhão" (1981) e "O Nariz Curvo"
(2001).
Muitos estão a meio caminho
entre o conto e a crônica, explorando aquele abismo, peculiar ao
Brasil, que há entre as línguas escrita e falada. São paródias do pedantismo bacharelesco, como no
relato que dá título ao livro (em
que o autor imagina os qüiproquós gerados por interpretações
equivocadas de palavras esdrúxulas), ou narrativas cujo humor
chega às raias do pastelão, como
em "O Defunto e Seu Melhor Bocado" (no qual um sujeito que
morrera em plena ereção deixa as
autoridades sem saberem o que
fazer com "joão-teimoso", o
"poste de amianto" que impede
as exéquias).
O efeito "sério" de tais paródias,
porém, está no rebaixamento geral promovido pelas cenas ficcionais. Pois assim como a língua é
submetida aqui a doses maciças
de purgante anti-retórico, também suas personagens são reduzidas a pulsões elementares. O sexo,
de preferência no limiar da morte,
é a argamassa dos contos do escritor paraense, sem entretanto cair
no brutalismo e conservando as
aflições desencadeadas por fantasias que beiram o insuportável.
Assim, em "O Negro e as Cercanias do Negro", uma mulher casada contempla o torso de um homem, possivelmente marinheiro
ou mecânico, que desliza à sua
frente -e a simples descrição de
sua "carnadura" e da brisa que sopra de seu corpo, ao mesmo tempo repulsiva e hipnotizante, é suficiente para projetar sobre o papel a intensidade de um desejo
que distorce a memória da violenta consumação.
No conto "Como as Rãs", em
contrapartida, o erotismo se explicita, pois a violência não está
no sexo em si, mas no interdito
que ele viola: o narrador é um menino que espreita a mãe e o pai na
cama, mas sua descrição ("ela pulando em cima dele feito lesa de
hospício") reveste a cena, que ao
final será recalcada por sentimentos de candura maternal, com
uma atmosfera grotesca.
Mesmo quando sai desse registro temático, Maranhão conserva
a atenção para aspectos sinistros
que se imiscuem na normalidade.
No mais longo e enigmático conto
do livro, "Amanhã Embarco para
a Basiléia", ele retoma o tema do
duplo, presente em autores como
Poe e Dostoiévski, fazendo com
que se insinue no decoro pseudocientífico de seu protagonista (um
acadêmico que disserta sobre a
existência de "protótipos", de
pessoas que são cópias) o terror
produzido pelo reconhecimento,
no rosto do outro, de nossa falta
de singularidade.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Feias, Quase Cabeludas
Autor: Haroldo Maranhão
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (192 págs.)
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