São Paulo, sábado, 02 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

O sinistro e seus duplos

MANUEL DA COSTA PINTO

COLUNISTA DA FOLHA

Nos 40 e 50, o escritor Haroldo Maranhão formou, com o filósofo Benedito Nunes e com o poeta Mário Faustino, uma tríade de intelectuais cujas trajetórias são marcantes na vida cultural brasileira. Tendo como epicentro Belém do Pará e, mais especificamente, o suplemento literário criado por Maranhão na "Folha do Norte", em 1946, a história desse grupo serve, por si só, para derrubar polaridades que opõem centro e periferia, ou caricaturas em que os Estados distantes dos grandes pólos urbanos estão vocacionados para uma concepção provinciana de mundo e, no caso da literatura, para o regionalismo.
O fato, porém, é que durante muito tempo Maranhão permaneceu à sombra do trabalho de Nunes (referência obrigatória para estudiosos de Heidegger ou de Clarice Lispector) e de Faustino (em que pese a morte precoce do poeta piauiense, num acidente aéreo em 1962).
Só recentemente sua obra, antes dispersa, começou a ser publicada de forma sistemática pela editora Planeta. Mas Maranhão não teve tempo de desfrutar esse reconhecimento: morreu no ano passado, pouco depois da reedição do romance "Memorial do Fim" -irônica coincidência para um autor assombrado pela idéia da morte e da insignificância das criaturas.
O segundo lançamento, dentro desse projeto editorial, é a antologia "Feias, Quase Cabeludas". Com seleção de Benedito Nunes e organização do crítico da Folha Marcelo Pen, o volume reúne textos de livros como "A Estranha Xícara" (1968), "Vôo de Galinha" (1978), "A Morte de Haroldo Maranhão" (1981) e "O Nariz Curvo" (2001).
Muitos estão a meio caminho entre o conto e a crônica, explorando aquele abismo, peculiar ao Brasil, que há entre as línguas escrita e falada. São paródias do pedantismo bacharelesco, como no relato que dá título ao livro (em que o autor imagina os qüiproquós gerados por interpretações equivocadas de palavras esdrúxulas), ou narrativas cujo humor chega às raias do pastelão, como em "O Defunto e Seu Melhor Bocado" (no qual um sujeito que morrera em plena ereção deixa as autoridades sem saberem o que fazer com "joão-teimoso", o "poste de amianto" que impede as exéquias).
O efeito "sério" de tais paródias, porém, está no rebaixamento geral promovido pelas cenas ficcionais. Pois assim como a língua é submetida aqui a doses maciças de purgante anti-retórico, também suas personagens são reduzidas a pulsões elementares. O sexo, de preferência no limiar da morte, é a argamassa dos contos do escritor paraense, sem entretanto cair no brutalismo e conservando as aflições desencadeadas por fantasias que beiram o insuportável.
Assim, em "O Negro e as Cercanias do Negro", uma mulher casada contempla o torso de um homem, possivelmente marinheiro ou mecânico, que desliza à sua frente -e a simples descrição de sua "carnadura" e da brisa que sopra de seu corpo, ao mesmo tempo repulsiva e hipnotizante, é suficiente para projetar sobre o papel a intensidade de um desejo que distorce a memória da violenta consumação.
No conto "Como as Rãs", em contrapartida, o erotismo se explicita, pois a violência não está no sexo em si, mas no interdito que ele viola: o narrador é um menino que espreita a mãe e o pai na cama, mas sua descrição ("ela pulando em cima dele feito lesa de hospício") reveste a cena, que ao final será recalcada por sentimentos de candura maternal, com uma atmosfera grotesca.
Mesmo quando sai desse registro temático, Maranhão conserva a atenção para aspectos sinistros que se imiscuem na normalidade. No mais longo e enigmático conto do livro, "Amanhã Embarco para a Basiléia", ele retoma o tema do duplo, presente em autores como Poe e Dostoiévski, fazendo com que se insinue no decoro pseudocientífico de seu protagonista (um acadêmico que disserta sobre a existência de "protótipos", de pessoas que são cópias) o terror produzido pelo reconhecimento, no rosto do outro, de nossa falta de singularidade.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Feias, Quase Cabeludas
   
Autor: Haroldo Maranhão
Editora: Planeta
Quanto: R$ 39,90 (192 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Política cultural: Calil defende a descentralização cultural
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.