São Paulo, quinta-feira, 02 de julho de 2009

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NINA HORTA

As receitas passadas a limpo


Pegaram um velhíssimo tratado de cozinha e revisitaram todas as receitas, o passado servindo ao futuro


VENHO FALANDO de receitas há duas semanas, mas não se esqueçam que no livro "A Culinária Materialista", do Carlos Alberto Dória, temos um capítulo que exaure o assunto. O definitivo.
Quando pensei que o meu caso com as receitas caseiras já ia minguando, recebo em casa a revista "Gastronomica", da editora da Universidade da Califórnia. Na seção de livros, comentam um do Hervé This, o pai da gastronomia molecular, escrito com Pierre Gagnaire. "Alchemists at the Stove", da Flammarion.
E de que trata? Pegaram um velhíssimo tratado de cozinha de Nicolas de Bonnefon, do século 17, com o nome de "Les Délices de la Campagne", e revisitaram todas as receitas, o passado servindo ao futuro. Quais os procedimentos que tinham razão de ser? Quais eram bobagens da época, ou coisas nas quais acreditávamos e que perderam o valor por um motivo ou outro.
Todo mundo sabe da receita da boa cozinheira que ao fazer um peixe o cortava ao meio e cozinhava metade em cada panela. Ao ser interrogada da razão desse comportamento, foi perguntar à mãe, com quem aprendera aquilo. A mãe, pensou, pensou, coçou a cabeça e explicou meio desapontada que nunca tivera coragem de comprar um panelão, seu pai pescava tão poucos peixes grandes!
Bom, então Gagnaire e This traduziram o livro sem mudar nadinha, no estilo da época e vão submetendo as receitas aos seus conhecimentos de físico-química e culinária, com muita leveza e verve. E o que querem os dois com esse livro? Querem nos alertar que quando colocamos uma laranja na feijoada devemos ter um motivo inteligente.
As pessoas se irritam muito com o autor, achando que a ciência não tem nada a ver com a cozinha. Ele se chateia. "Não estou fazendo comida, estou fazendo ciência, a ciência produz conhecimento e a culinária produz comida!"
E não consigo entender por que essa implicância. Se nós tivéssemos que estudar para descobrir tudo, ainda vá lá, mas quem está estudando são eles. Só nos sobram os benefícios! Não gostaríamos que descubram novos modos que deixem a comida mais gostosa, ou mais fácil de fazer? Por que o bolo embatumou? Por que raios a mesma carne de sempre saiu dura?
Lá pelos anos 80, traduzi um livro da ótima coleção do "Time Life", ou traduzi vários, já nem me lembro, e na infinda luta por espaço, caíram justamente as explicações dos motivos pelos quais ao fazermos a comida ela se comportava de tal ou tal jeito. Foi um desgosto, pois aquilo ajudava barbaramente numa receita. E o engraçado é que já devia ter o dedo desses cientistas no meio, porque a coleção foi ideada por Nicholas Kurti, Alan Davidson, todos companheiros e da mesma panelinha do Hervé This.
Tenho um amigo, John Thorne, escritor americano, que não conversa com as receitas, como é moda agora. Ele põe as receitas a conversarem entre si. Tem uma bela biblioteca e uma bela cultura. Se quer fazer um receita, acha-a em todos os livros e vai comparando, relacionando-a à época, destrinchando com perfeccionismo o motivo de terem aumentado tanto açúcar e porque cem anos depois o retiraram etc. e tal. Acaba chegando no que ele quer e com sua própria contribuição, dependendo do lugar onde está morando, do mercado mais perto. Enfim, decidimos o que queremos fazer de jantar para o dia seguinte.
Já não chega, temos que saber onde comprar a comida, provar com o nariz, com os olhos e com a boca, encontrar equilíbrio entre os ingredientes, usar os temperos, pesar, medir, ter as ferramentas apropriadas, entender de assar e cozinhar e fritar, das panelas e formas, e, ainda por cima, escolher o vinho certo. E agora, Deus nos ajude, criticar as danadas das receitas. Hum, hum.

ninahorta@uol.com.br


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