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GASTRONOMIA
Dezenove redondinhos mangaritos
NINA HORTA
Colunista da Folha
Tive um amigo que de vez em
quando encompridava os olhos
em direção à infância e me perguntava se eu sabia onde encontrar
mangaritos. Eu não sabia, que pena...
No ano passado, chegou ao meu
bufê uma carta acompanhada por
cinco batatinhas sujas. Obviamente, eu havia conversado com o provedor de mangaritos e mencionara
minha curiosidade, mas não me
lembrava de nada. Pois mangaritos eram as batatas. O que fazer
com aquilo?
Comê-las todas? Comer a metade
e plantar as outras?
O ser urbano, criado em cidade,
tem medo de plantar, não sabe por
onde começar, quão fundo enfiar a
semente, quantas delas, em que
mês, em que lua, norte, sul, leste,
oeste, no sol ou à sombra? Só poderia vir ao meu socorro o doador
que, quero acreditar, é um ilustre
botânico. E ele não decepcionou.
Chama-se João Luiz, e começou a
deixar bilhetes e verbetes orientando minha ignorância na formação
de um mangarital.
Plantei num canto do jardim,
cercado por umas tabuinhas. O
verbete "mangará" do "Dicionário
Histórico de Palavras Portuguesas
de Origem Tupi", de Antonio Geraldo Cunha, tem uma descrição
de Gabriel Soares.
"Dão-se nesta terra outras raízes
tamanhas como nozes e avelãs que
se chamam mangarás, e quando se
colhem arrancam-nas debaixo da
terra em touças, como junças, e tira-se de cada pé duzentos e trezentos juntos."
Como comê-los? Ele mesmo ensinava: "As raízes deste mangará se
comem cozidas em água e sal e dão
casca como os tremoços".
E o botânico foi me elucidando
sobre as plantas com o maior jeito
de cientista, nomeando até as páginas da "Brasiliana", onde poderia
encontrar mais informações.
E enquanto debaixo da terra
cresciam touças de mangaritos,
crescia na superfície minha sabedoria.
Algumas vezes, o amigo botânico
falava simples, como no dia-a-dia.
"O primo Dino Vieira, caipira do
interior de São Paulo, tem na sua
horta duas espécies do dito, uma
branca, outra amarela (...). No
mercado de Ubatuba, onde consegui as mudas, o fornecedor, um
caiçara sambado, o seu José, falou
que o mangarito dá uma batata
central e os "dedinhos". São esses
dedinhos que se comem. Ele indica
comer com melado. Veja quanta
ciência numa simples arácea!"
Introduzida a palavra "arácea", o
amigo invisível me indicava a leitura de "O Saber do Sabor", de Gil
Felippe, o que fiz com prazer, já
apaixonada pelos meus mangaritos, que cresciam, engordavam.
A família Araceae agrupa 110 gêneros e é tropical. É a família de
muitas ornamentais, como o antúrio, o filodendro, o comigo-ninguém-pode, o caládio,o copo-de-leite, a monstera, como também o
mangarito (Xanthosoma), o inhame (Alocasia) e a taiova (Colocasia).
O mangarito já estava batizado
pomposamente de Xanthosoma
sagittifollium (L.) Schott (família
Araceae).
Confesso ter tido um momento
de dúvida quanto às boas intenções do fornecedor de mangarito.
Seria um originalíssimo "serial killer"?
Comigo-ninguém-pode não é
veneno dos bons? O crime perfeito. Seis meses depois do presente,
mangaritos colhidos e comidos,
ninguém se lembraria do assassino.
E os mangaritos
davam folhas verdes, nada extraordinárias, e
poderíamos imaginá-los enroscando-se nas rosas,
atrapalhando a salsinha,
matando a sálvia.
Esperei. Colhi. Não foram
300 nem 350. Dezenove. Redondinhos como azeitonas, pele
macia, frescas batatinhas. Lavei
bem. Cozinhei e a pele se soltava só com a pressão dos
dedos. Ainda quentes,
amassei-os com o garfo e fui
comendo com melado numa
homenagem muda ao meu
amigo que os comia na infância
e ao meu fornecedor de batatas
exóticas. É gostosinho. Nada que
faça o Oriente se curvar, mas gostosinho. Gosto de cará. Quase.
Logo vi que afofei pouco a terra,
por isso não consegui touças como
junças (!). O erro não se repetirá.
João Luiz está convidado para a
sopa do ano, que vem feita com
300 ou 350 mangaritos. Por enquanto,
valeu, continuo velando por eles,
noite e dia. Estão
bem cuidados.
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