São Paulo, Sexta-feira, 02 de Julho de 1999
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GASTRONOMIA
Dezenove redondinhos mangaritos

NINA HORTA
Colunista da Folha

Tive um amigo que de vez em quando encompridava os olhos em direção à infância e me perguntava se eu sabia onde encontrar mangaritos. Eu não sabia, que pena...
No ano passado, chegou ao meu bufê uma carta acompanhada por cinco batatinhas sujas. Obviamente, eu havia conversado com o provedor de mangaritos e mencionara minha curiosidade, mas não me lembrava de nada. Pois mangaritos eram as batatas. O que fazer com aquilo?
Comê-las todas? Comer a metade e plantar as outras?
O ser urbano, criado em cidade, tem medo de plantar, não sabe por onde começar, quão fundo enfiar a semente, quantas delas, em que mês, em que lua, norte, sul, leste, oeste, no sol ou à sombra? Só poderia vir ao meu socorro o doador que, quero acreditar, é um ilustre botânico. E ele não decepcionou. Chama-se João Luiz, e começou a deixar bilhetes e verbetes orientando minha ignorância na formação de um mangarital.
Plantei num canto do jardim, cercado por umas tabuinhas. O verbete "mangará" do "Dicionário Histórico de Palavras Portuguesas de Origem Tupi", de Antonio Geraldo Cunha, tem uma descrição de Gabriel Soares.
"Dão-se nesta terra outras raízes tamanhas como nozes e avelãs que se chamam mangarás, e quando se colhem arrancam-nas debaixo da terra em touças, como junças, e tira-se de cada pé duzentos e trezentos juntos."
Como comê-los? Ele mesmo ensinava: "As raízes deste mangará se comem cozidas em água e sal e dão casca como os tremoços".
E o botânico foi me elucidando sobre as plantas com o maior jeito de cientista, nomeando até as páginas da "Brasiliana", onde poderia encontrar mais informações.
E enquanto debaixo da terra cresciam touças de mangaritos, crescia na superfície minha sabedoria.
Algumas vezes, o amigo botânico falava simples, como no dia-a-dia. "O primo Dino Vieira, caipira do interior de São Paulo, tem na sua horta duas espécies do dito, uma branca, outra amarela (...). No mercado de Ubatuba, onde consegui as mudas, o fornecedor, um caiçara sambado, o seu José, falou que o mangarito dá uma batata central e os "dedinhos". São esses dedinhos que se comem. Ele indica comer com melado. Veja quanta ciência numa simples arácea!"
Introduzida a palavra "arácea", o amigo invisível me indicava a leitura de "O Saber do Sabor", de Gil Felippe, o que fiz com prazer, já apaixonada pelos meus mangaritos, que cresciam, engordavam.
A família Araceae agrupa 110 gêneros e é tropical. É a família de muitas ornamentais, como o antúrio, o filodendro, o comigo-ninguém-pode, o caládio,o copo-de-leite, a monstera, como também o mangarito (Xanthosoma), o inhame (Alocasia) e a taiova (Colocasia).
O mangarito já estava batizado pomposamente de Xanthosoma sagittifollium (L.) Schott (família Araceae).
Confesso ter tido um momento de dúvida quanto às boas intenções do fornecedor de mangarito. Seria um originalíssimo "serial killer"?
Comigo-ninguém-pode não é veneno dos bons? O crime perfeito. Seis meses depois do presente, mangaritos colhidos e comidos, ninguém se lembraria do assassino.
E os mangaritos davam folhas verdes, nada extraordinárias, e poderíamos imaginá-los enroscando-se nas rosas, atrapalhando a salsinha, matando a sálvia.
Esperei. Colhi. Não foram 300 nem 350. Dezenove. Redondinhos como azeitonas, pele macia, frescas batatinhas. Lavei bem. Cozinhei e a pele se soltava só com a pressão dos dedos. Ainda quentes, amassei-os com o garfo e fui comendo com melado numa homenagem muda ao meu amigo que os comia na infância e ao meu fornecedor de batatas exóticas. É gostosinho. Nada que faça o Oriente se curvar, mas gostosinho. Gosto de cará. Quase.
Logo vi que afofei pouco a terra, por isso não consegui touças como junças (!). O erro não se repetirá. João Luiz está convidado para a sopa do ano, que vem feita com 300 ou 350 mangaritos. Por enquanto, valeu, continuo velando por eles, noite e dia. Estão bem cuidados.



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