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Para Rocco e seus irmãos, vida é impossibilidade
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Se a maior parte da obra de Luchino Visconti pode ser vinculada
ao modo operístico -pela grandiloquência, sentimentalidade, musicalidade, romantismo, peso da
cenografia na mise-en-scène-,
"Rocco e Seus Irmãos" vincula-se
antes à tradição da tragédia popular, e remete seu espectador a um
Visconti muito marcado pela influência de Jean Renoir (de quem
foi assistente).
É verdade que o mundo se transforma, de um filme como "A Besta
Humana" a "Rocco". Nesse Renoir
de 1938, o viés genético (herdado
do livro de Zola) é dominante: a tara que domina o herói é herança de
gerações e gerações passadas.
Em "Rocco", a tara não é genética, mas social. Vem do sul, junto
com os Parondi, mãe e quatro filhos, que vêm encontrar em Milão
o mais velho, Vicenzo (Spiros Focas). Tudo começa com um tom
farsesco, alimentado pela "mamma" Rosario (Katina Paxinou), cuja vida se identifica à dos filhos,
mas que exige dos filhos a recíproca, isto é, que vivam em função do
espírito familiar.
O aspecto trágico é vivido com
maior intensidade por dois dos irmãos. Um é o conturbado Simone
(Renato Salvatori), lutador de boxe para quem a cidade grande oferecerá todos os elementos necessários à perdição. Primeiro, tem a
chance de se transformar em lutador de boxe (meio de ascensão social numa Itália que, no final dos
anos 50, ainda se ressente da devastação da guerra). Em seguida, o
próprio sucesso no boxe o leva a
frequentar amigos pouco recomendáveis. Para terminar, Simone
apaixona-se pela bela prostituta
Nadia (Annie Girardot), que não
lhe dá muita pelota.
Em uma palavra, Simone é o tipo
do personagem que só espera sair
de sua aldeola para ser tragado pela grande cidade. Que Visconti nos
mostre essa atração pelo mal que
Simone carrega sem nunca perder
de vista a família não é certamente
um mérito menor.
Estamos longe dos clichês habituais da cidade grande, e nesse sentido Visconti trabalha nos antípodas do Murnau de "Aurora", por
exemplo. Simone embrenha-se
quase inadvertidamente na seara
do mal, e daí talvez venha seu encanto: a besta humana -essa que
existe em cada homem, afinal-
manifesta-se com suavidade.
Rocco (Alain Delon) é o inverso
de Simone. Sua única tara, por assim dizer, é o sentimento familiar
exacerbado. Não suportando ver a
desgraça de Simone, Rocco se torna lutador de boxe. Para evitar a cisão familiar, renuncia ao amor de
Nadia (por quem é apaixonado).
Em poucas palavras, Rocco é um
homem preparado para a renúncia
de seus desejos e impulsos. Cabe-lhe viver e realizar os desejos maternos. Veremos com o tempo que
o "bom rapaz" é só a outra face do
"bad boy" Simone. Para ambos, a
vida é uma impossibilidade, já que
o único desejo que são capazes de
vivenciar (cada um à sua maneira)
é o desejo da mãe, do qual nunca
poderão se desvincular (tanto
quanto os demais irmãos, embora
estes de maneira mais discreta).
De todo modo, se Visconti tem
algo a dizer neste filme é, antes de
tudo, que a vida é impraticável para Rocco e seus irmãos em outro
gênero que não a tragédia.
É possível até descartar os últimos planos, em que Visconti esforça-se para dar uma coerência social à tragédia. Hoje, 40 anos depois de este filme ter sido feito,
basta olhar em volta para perceber
sua atualidade. As mortes e estupros que se vêem no filme, se
transportadas para a periferia das
grandes cidades, apenas não têm a
dimensão trágica e a grandiosidade com que as retrata Visconti. São
asperamente cotidianas, banais.
"Rocco e Seus Irmãos" tira esses
personagens do noticiário sanguinolento para lhes atribuir uma nobreza, uma grandeza sublime que
se traduz também pelo uso impecável da tela larga, onde o quadro
familiar ganha o espaço necessário
para se expandir.
Sem essa tela larga, é possível que
cenas como a da mãe com os filhos
puxando um carrinho com a mudança, diante de um conjunto habitacional para proletários, não
fossem tão memoráveis. "Rocco" é
uma obra-prima tão dura quanto
generosa.
(É impossível lembrar da versão
lançada originalmente no Brasil.
Segundo a distribuidora, algumas
cenas teriam sido originalmente
suprimidas. A do estupro de Nadia, entre elas -por ação da censura. Isso pouco altera as coisas: tal
como está, "Rocco" é um filme
deslumbrante.)
Avaliação:
Filme: Rocco e Seus Irmãos
Produção: Itália/França, 1960
Direção: Luchino Visconti
Com: Alain Delon, Renato Salvatori
Quando: a partir de hoje, no Vitrine
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