São Paulo, Sexta-feira, 02 de Julho de 1999
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Para Rocco e seus irmãos, vida é impossibilidade

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Se a maior parte da obra de Luchino Visconti pode ser vinculada ao modo operístico -pela grandiloquência, sentimentalidade, musicalidade, romantismo, peso da cenografia na mise-en-scène-, "Rocco e Seus Irmãos" vincula-se antes à tradição da tragédia popular, e remete seu espectador a um Visconti muito marcado pela influência de Jean Renoir (de quem foi assistente).
É verdade que o mundo se transforma, de um filme como "A Besta Humana" a "Rocco". Nesse Renoir de 1938, o viés genético (herdado do livro de Zola) é dominante: a tara que domina o herói é herança de gerações e gerações passadas.
Em "Rocco", a tara não é genética, mas social. Vem do sul, junto com os Parondi, mãe e quatro filhos, que vêm encontrar em Milão o mais velho, Vicenzo (Spiros Focas). Tudo começa com um tom farsesco, alimentado pela "mamma" Rosario (Katina Paxinou), cuja vida se identifica à dos filhos, mas que exige dos filhos a recíproca, isto é, que vivam em função do espírito familiar.
O aspecto trágico é vivido com maior intensidade por dois dos irmãos. Um é o conturbado Simone (Renato Salvatori), lutador de boxe para quem a cidade grande oferecerá todos os elementos necessários à perdição. Primeiro, tem a chance de se transformar em lutador de boxe (meio de ascensão social numa Itália que, no final dos anos 50, ainda se ressente da devastação da guerra). Em seguida, o próprio sucesso no boxe o leva a frequentar amigos pouco recomendáveis. Para terminar, Simone apaixona-se pela bela prostituta Nadia (Annie Girardot), que não lhe dá muita pelota.
Em uma palavra, Simone é o tipo do personagem que só espera sair de sua aldeola para ser tragado pela grande cidade. Que Visconti nos mostre essa atração pelo mal que Simone carrega sem nunca perder de vista a família não é certamente um mérito menor.
Estamos longe dos clichês habituais da cidade grande, e nesse sentido Visconti trabalha nos antípodas do Murnau de "Aurora", por exemplo. Simone embrenha-se quase inadvertidamente na seara do mal, e daí talvez venha seu encanto: a besta humana -essa que existe em cada homem, afinal- manifesta-se com suavidade.
Rocco (Alain Delon) é o inverso de Simone. Sua única tara, por assim dizer, é o sentimento familiar exacerbado. Não suportando ver a desgraça de Simone, Rocco se torna lutador de boxe. Para evitar a cisão familiar, renuncia ao amor de Nadia (por quem é apaixonado).
Em poucas palavras, Rocco é um homem preparado para a renúncia de seus desejos e impulsos. Cabe-lhe viver e realizar os desejos maternos. Veremos com o tempo que o "bom rapaz" é só a outra face do "bad boy" Simone. Para ambos, a vida é uma impossibilidade, já que o único desejo que são capazes de vivenciar (cada um à sua maneira) é o desejo da mãe, do qual nunca poderão se desvincular (tanto quanto os demais irmãos, embora estes de maneira mais discreta).
De todo modo, se Visconti tem algo a dizer neste filme é, antes de tudo, que a vida é impraticável para Rocco e seus irmãos em outro gênero que não a tragédia.
É possível até descartar os últimos planos, em que Visconti esforça-se para dar uma coerência social à tragédia. Hoje, 40 anos depois de este filme ter sido feito, basta olhar em volta para perceber sua atualidade. As mortes e estupros que se vêem no filme, se transportadas para a periferia das grandes cidades, apenas não têm a dimensão trágica e a grandiosidade com que as retrata Visconti. São asperamente cotidianas, banais.
"Rocco e Seus Irmãos" tira esses personagens do noticiário sanguinolento para lhes atribuir uma nobreza, uma grandeza sublime que se traduz também pelo uso impecável da tela larga, onde o quadro familiar ganha o espaço necessário para se expandir.
Sem essa tela larga, é possível que cenas como a da mãe com os filhos puxando um carrinho com a mudança, diante de um conjunto habitacional para proletários, não fossem tão memoráveis. "Rocco" é uma obra-prima tão dura quanto generosa.
(É impossível lembrar da versão lançada originalmente no Brasil. Segundo a distribuidora, algumas cenas teriam sido originalmente suprimidas. A do estupro de Nadia, entre elas -por ação da censura. Isso pouco altera as coisas: tal como está, "Rocco" é um filme deslumbrante.)


Avaliação:     


Filme: Rocco e Seus Irmãos Produção: Itália/França, 1960 Direção: Luchino Visconti Com: Alain Delon, Renato Salvatori Quando: a partir de hoje, no Vitrine

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