São Paulo, quarta-feira, 02 de agosto de 2000


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MARCELO COELHO
"No Limite", o verdadeiro "Você Decide"

Preparei-me para detestar "No Limite", o novo programa da Globo que imita as gincanas hardcore da TV do Primeiro Mundo. Mas como! Não contente de dominar as mentes de milhões de pessoas, a televisão agora passa a dominar seus corpos; não contente com a "dramaturgia" grotesca das novelas, passa a fazer sensacionalismo com pessoas reais: degradação e voyeurismo, exploração da fragilidade humana, triunfo das câmeras sobre a ética de cada um -eis do que se trata.
Talvez esteja certo o que comecei a dizer acima. Mas o fato é que não consegui desgrudar os olhos de "No Limite". Vi e, por mais que não gostasse, gostei.
Há muito tempo a televisão estava a nos dever tamanho choque de realidade. O "realismo" das novelas nunca passou de nhenhenhém, os dilemas de "Você Decide" eram de uma burrice atroz. Estranhamente, mesmo o noticiário, quando registra algum escândalo ou violência ao vivo, parece plastificado e descartável.
Todo o eufemismo das novelas, toda a moralidade pronta para consumir de "Você Decide", toda a indiferença que cotidianamente embala o "Jornal Nacional" desaparece neste programa.
No último domingo, o negro Amendoim foi expulso da equipe derrotada na gincana. Foi racismo? Ou Amendoim realmente atrapalhava a equipe? Atrapalhou a equipe porque atrapalhava mesmo? Ou porque a equipe era racista? Não dá pra saber. A edição do programa deixa tudo em suspenso. Gravaram-se depoimentos dos seus membros (mas faltou a Amendoim o direito de dar a última palavra) nos quais pode haver e pode não haver racismo.
Fiquei fascinado. Na equipe contrária, registraram-se movimentos de discriminação contra Chico, sujeito de meia-idade que, segundo dizem, é mandão e teimoso. Ele toma a palavra diante da câmera. É mais experiente que os outros e, por isso, tende a ser contestado. Estará certo? Estará errado?
Não consigo saber. Melhor que isso: não consigo torcer. E aqui já temos um progresso inestimável. O básico, em qualquer entretenimento, é a torcida; é a divisão entre o bem e o mal -e, ao contrário de qualquer novela, ou mesmo de qualquer noticiário, nada fica claro em "No Limite".
É um programa que faz pensar e não um programa que faz torcer. Aqui, sim, estamos diante de um verdadeiro "Você Decide"- pois as situações humanas que se expõem na tela têm toda a ambiguidade da vida real, abrindo-se a qualquer interpretação.
O julgamento moral, sempre manipulado e fácil nos programas de TV, torna-se mais complexo e subjetivo com "No Limite". Por certo, tudo tende a uma conclusão conservadora e má.
"Eis aí o ser humano", diz o telespectador quando a coisa engrossa, quando os conflitos vêm à tona, quando egoísmo, preconceito, inveja e raiva se revelam. Mas nisso há mais moralismo do espectador do que do programa em si.
Posso muito bem reagir do seguinte modo: eis aí o ser humano -frágil, rancoroso, em busca de bodes expiatórios quando sente fome, sede e frio. Eis aí o ser humano, exposto a uma situação de máxima competitividade. E posso também pensar: pois bem, e daí? Que a câmera mostre -e faz isso até com algum pudor- o individualismo essencial de cada um, o descontrole de José, a baixaria de João, haverá tanto que nos envergonhe nesse circo?
Eu não seria melhor que Chico, que Amendoim, que Hilma, que Vanderson. Talvez fosse pior. Não me detesto por isso. Detesto-me com frequência, aliás; não sei se mais que qualquer outra pessoa, mas me detesto -e me perdôo também, pois nisto reside a condição de minha sobrevivência.
A "sobrevivência" deles, entretanto, depende de mais que isso. "No Limite" tem de especialmente instrutivo o contraste que existe entre o discurso dos personagens, sempre em torno da solidariedade e do companheirismo, e a prática de uma competição ferrenha, submetido ao arbítrio revoltante das regras do jogo, que fazem da emissora de TV uma senhora dos destinos de cada um.
Evidentemente, a solidariedade se reduz a uma mera palavra numa situação de competitividade extrema. Isso é o que há de perverso no programa. Quanto a devassar a intimidade de cada um, parece ser esta uma marca dos tempos modernos: o loft sem divisórias, o vidro, a transparência nas roupas, tudo tende a destruir a esfera da intimidade.
É a última fase do Iluminismo -luzes dicróicas sobre cristal e alumínio- que, com todo o seu brilho asséptico, vem revelar uma baixeza, uma "sujeira", no ser humano. Não nego o que há de artificial nesse rebaixamento, feito de tarefas impossíveis de cumprir, de "situações-limite", organizadas em computador. É possível, entretanto, celebrar a fraqueza de cada um, de cada participante da gincana, de nós mesmos, sem se diminuir. Desde que a Rede Globo o permita. Mas acho que, incrivelmente, permite.



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