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MARCELO COELHO
"No Limite", o verdadeiro "Você Decide"
Preparei-me para detestar
"No Limite", o novo programa da Globo que imita as gincanas hardcore da TV do Primeiro
Mundo. Mas como! Não contente
de dominar as mentes de milhões
de pessoas, a televisão agora passa a dominar seus corpos; não
contente com a "dramaturgia"
grotesca das novelas, passa a fazer sensacionalismo com pessoas
reais: degradação e voyeurismo,
exploração da fragilidade humana, triunfo das câmeras sobre a
ética de cada um -eis do que se
trata.
Talvez esteja certo o que comecei a dizer acima. Mas o fato é que
não consegui desgrudar os olhos
de "No Limite". Vi e, por mais que
não gostasse, gostei.
Há muito tempo a televisão estava a nos dever tamanho choque
de realidade. O "realismo" das
novelas nunca passou de nhenhenhém, os dilemas de "Você Decide" eram de uma burrice atroz.
Estranhamente, mesmo o noticiário, quando registra algum escândalo ou violência ao vivo, parece
plastificado e descartável.
Todo o eufemismo das novelas,
toda a moralidade pronta para
consumir de "Você Decide", toda
a indiferença que cotidianamente
embala o "Jornal Nacional" desaparece neste programa.
No último domingo, o negro
Amendoim foi expulso da equipe
derrotada na gincana. Foi racismo? Ou Amendoim realmente
atrapalhava a equipe? Atrapalhou a equipe porque atrapalhava mesmo? Ou porque a equipe
era racista? Não dá pra saber. A
edição do programa deixa tudo
em suspenso. Gravaram-se depoimentos dos seus membros (mas
faltou a Amendoim o direito de
dar a última palavra) nos quais
pode haver e pode não haver racismo.
Fiquei fascinado. Na equipe
contrária, registraram-se movimentos de discriminação contra
Chico, sujeito de meia-idade que,
segundo dizem, é mandão e teimoso. Ele toma a palavra diante
da câmera. É mais experiente que
os outros e, por isso, tende a ser
contestado. Estará certo? Estará
errado?
Não consigo saber. Melhor que
isso: não consigo torcer. E aqui já
temos um progresso inestimável.
O básico, em qualquer entretenimento, é a torcida; é a divisão entre o bem e o mal -e, ao contrário de qualquer novela, ou mesmo
de qualquer noticiário, nada fica
claro em "No Limite".
É um programa que faz pensar
e não um programa que faz torcer. Aqui, sim, estamos diante de
um verdadeiro "Você Decide"-
pois as situações humanas que se
expõem na tela têm toda a ambiguidade da vida real, abrindo-se
a qualquer interpretação.
O julgamento moral, sempre
manipulado e fácil nos programas de TV, torna-se mais complexo e subjetivo com "No Limite".
Por certo, tudo tende a uma conclusão conservadora e má.
"Eis aí o ser humano", diz o telespectador quando a coisa engrossa, quando os conflitos vêm à
tona, quando egoísmo, preconceito, inveja e raiva se revelam. Mas
nisso há mais moralismo do espectador do que do programa em
si.
Posso muito bem reagir do seguinte modo: eis aí o ser humano
-frágil, rancoroso, em busca de
bodes expiatórios quando sente
fome, sede e frio. Eis aí o ser humano, exposto a uma situação de
máxima competitividade. E posso
também pensar: pois bem, e daí?
Que a câmera mostre -e faz isso
até com algum pudor- o individualismo essencial de cada um, o
descontrole de José, a baixaria de
João, haverá tanto que nos envergonhe nesse circo?
Eu não seria melhor que Chico,
que Amendoim, que Hilma, que
Vanderson. Talvez fosse pior. Não
me detesto por isso. Detesto-me
com frequência, aliás; não sei se
mais que qualquer outra pessoa,
mas me detesto -e me perdôo
também, pois nisto reside a condição de minha sobrevivência.
A "sobrevivência" deles, entretanto, depende de mais que isso.
"No Limite" tem de especialmente instrutivo o contraste que existe
entre o discurso dos personagens,
sempre em torno da solidariedade e do companheirismo, e a prática de uma competição ferrenha,
submetido ao arbítrio revoltante
das regras do jogo, que fazem da
emissora de TV uma senhora dos
destinos de cada um.
Evidentemente, a solidariedade
se reduz a uma mera palavra numa situação de competitividade
extrema. Isso é o que há de perverso no programa. Quanto a devassar a intimidade de cada um,
parece ser esta uma marca dos
tempos modernos: o loft sem divisórias, o vidro, a transparência
nas roupas, tudo tende a destruir
a esfera da intimidade.
É a última fase do Iluminismo
-luzes dicróicas sobre cristal e
alumínio- que, com todo o seu
brilho asséptico, vem revelar uma
baixeza, uma "sujeira", no ser
humano. Não nego o que há de
artificial nesse rebaixamento, feito de tarefas impossíveis de cumprir, de "situações-limite", organizadas em computador. É possível, entretanto, celebrar a fraqueza de cada um, de cada participante da gincana, de nós mesmos,
sem se diminuir. Desde que a Rede Globo o permita. Mas acho
que, incrivelmente, permite.
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