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São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2003

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BIBLIOTECA FOLHA

Em "Rumo ao Farol", de 1927, autora intensifica experiências narrativas de "Jacobs Room" e "Mrs. Dalloway"

Woolf passeia entre ficção e autobiografia

France Presse
A atriz Nicole Kidman como Virginia Woolf em "As Horas" (2002)


JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Rumo ao Farol" ("To the Lighthouse"), de Virginia Woolf (1882-1941), foi publicado em 1927. Antes, em 1925, havia publicado "Mrs. Dalloway". Depois, em 1928, publicará "Orlando". E, se a essas duas obras fundamentais da ficção moderna se acrescentar ainda a publicação da primeira série do "Common Reader", em 1925, reunindo, pela primeira vez, alguns dos ensaios fundamentais da escritora, tem-se uma idéia da importância desse momento em sua vida.
Vida que encontraria nas obras mencionadas os seus exemplos mais acabados e fortes de representação.
Por um lado, era a memória dos pais -Julia e Leslie Stephen- , que seria o modelo do casal Ramsay, protagonista de "Rumo ao Farol", e, por outro, as experiências afetivas e amorosas com a bela e talentosa Vita Sackville-West, protótipo do hermafrodita Orlando.
Mais importante do que isso, entretanto, foi que, nesse livro de 1927, ela intensificou as experiências de construção narrativa que estão em suas obras imediatamente anteriores, o "Jacobs Room", de 1922, e o já mencionado "Mrs. Dalloway", sobretudo a superação dos limites da ficção realista com técnicas de simultaneidade alicerçadas naquilo que se chamou, a partir de William James, de "fluxo da consciência", permitindo-se a integração, na estrutura da narrativa, de momentos de iluminação (as epifanias de Joyce ou Proust) e criando-se, por outro lado, uma nova concepção do tempo narrativo a que já se chamou de "forma espacial do romance".
Neste sentido, embora a obra tenha um plano claramente delineado, as três partes, separadas por dez anos de experiências, antes confundem do que clarificam a cronologia porque o tempo que passa, ou passou, como está sobretudo na segunda parte, não se desprega da experiência subjetiva e da memória dos personagens.
Assim, por exemplo, os dez anos transcorridos somente são revelados uma única vez ao leitor e como que de passagem, numa das muitas iluminações experimentadas por Lily Briscoe, pintora que assume o foco narrativo da última parte, no seguinte trecho: "Quando se sentara ali pela última vez, dez anos atrás, havia um ramo ou folha no desenho da toalha, para o qual olhara num momento de revelação. Havia um problema sobre o primeiro plano de um quadro. Mover a árvore para o centro, dissera. Nunca terminara esse quadro. E isso ficara remoendo em sua mente todos esses anos".
E se o romance se inicia pelas diferenças entre Mr. e Mrs. Ramsay -a primeira frase do livro "É claro que amanhã fará um dia bonito", proferida pela mãe, é logo contrariada pela do pai, "Mas o dia não ficará bom"- elas não se resolvem durante a narrativa (mesmo porque Mrs. Ramsay já está morta ao se iniciar a segunda parte) e o que persiste é o passeio ao farol antes como busca, projeto, procura, do que como uma realização.
É preciso atentar para o fato de que o último capítulo não é de chegada, mas de ida ao farol em que Lily Briscoe, trabalhando em seu quadro, vê a família Ramsay, agora reduzida a seis filhos, guiada pelo pai, desaparecer por entre a bruma e a distância.
Nada é fixo neste romance, muito menos os significados.
A própria Virginia Woolf, em resposta a uma carta de Roger Fry, escrevia sobre o assunto: "Não signifiquei nada com o farol... Vejo que todas as espécies de sentimentos serão acrescentados a isto, porém me recuso a pensá-los e acredito que as pessoas farão deles o depósito de suas próprias emoções. Não sei tratar com simbolismo exceto neste sentido vago, generalizado".
Não obstante, e assim como a agora madura Lily Briscoe espera, trabalhando, que um novo momento de revelação possa ajudá-la a terminar o seu quadro (o que, de fato, acaba por ocorrer), assim Virginia Stephen, agora uma amadurecida Virginia Woolf, acumula revelações por onde possa responder a uma existência atormentada pelas relações familiares pontilhada de assédios sexuais, crises de identidade (em que a sexual não era das menores) que terminaria por levá-la, não ao farol, mas às águas profundas do rio Ouse, onde se suicidou.


João Alexandre Barbosa, 65, é professor titular de teoria literária e literatura comparada da USP e autor de "A Metáfora Crítica" (Perspectiva, 1974), "A Biblioteca Imaginária" (Ateliê, 1996) e "Alguma Crítica" (Ateliê, 2002), entre outros


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